Ao lado de One Piece, Detective Conan é mais uma daquelas séries criadas nos anos 1990 e que continuam fazendo um sucesso avassalador até hoje. Só que enquanto o pirata que estica conseguiu atravessar o mar e construir sua fama no mundo inteiro, o detetive criado por Gosho Aoyama tem um pouco de dificuldade de se consagrar como um estouro fora de seu país de origem. Com a chegada de Zero's Tea Time (um derivado da franquia) no catálogo da Netflix, talvez seja a hora de conversarmos sobre o sucesso de Detective Conan e questionar o que deu “errado” com a série no ocidente.
O Japão ama o Conan
No último final de semana, os fãs de mangá presenciaram um encontro raro: os principais personagens das editoras rivais Shueisha e Shogakukan dividiram uma capa conjunta, com uma imagem formada quando se coloca lado a lado as edições da Shonen Jump e da Shonen Sunday. Representando a Shueisha estava o já conhecido pirata Monkey D. Luffy com seu braço direito Roronoa Zoro, e do lado da Shogakukan foi escolhido o jovem garoto detetive Conan Edogawa e o agente triplo Rei Furuya, o Zero. Os fãs também puderam aproveitar um bate-papo incrível entre os autores Eiichiro Oda e Gosho Aoyama, em que foram relevados bastidores, planos e desabafos.
A aparição de Conan ao lado de Luffy já mostra que sua série é um sucesso gigante, pelo menos no Japão. Não importa onde você olhe no Japão, em qualquer canto verá estampada a imagem do detetive mirim com seus óculos e terninho azul. Desde 1994, quando o mangá começou a ser publicado na Shonen Sunday, o Japão se rendeu ao carisma do jovem detetive que busca pela cura de sua condição especial.
Detective Conan conta a história de Shinichi Kudo, um adolescente genial na hora de solucionar crimes. No primeiro capítulo da história ele é encurralado por uma gangue e obrigado a tomar um medicamento misterioso que lhe causa um efeito adverso: Shinichi se transforma em uma criança. Com medo da gangue encontrá-lo e atentar contra sua vida, Shinichi assume a identidade de Conan Edogawa (uma mistura dos nomes de Sir Arthur Conan Doyle e Ranpo Edogawa, autores de livros sobre crimes) e passa a morar com sua amiga/crush Ran Mori, filha do detetive pouco inteligente Kogoro Mori.
Enquanto busca reverter seu rejuvenescimento, Conan conta com a ajuda do cientista Doutor Agasa, o único que sabe desse segredo. Como todos os crimes do mundo acontecem ao redor desse ímã de desastres, o doutor desenvolve vários mecanismos para Conan resolver seus casos, indo desde um calçado que dá força nos chutes até mesmo um modulador de voz que Conan usa para fingir ser adulto quando quer ter seus palpites levados em consideração pela polícia.
Essa é a premissa básico de Detective Conan e, acredite ou não, a série não avançou tanto assim em questão de roteiro. Tanto o mangá quanto o anime são histórias mais fechadas, com Conan e seus amigos resolvendo os crimes e mistérios que aparecem, de sequestros a assassinatos. De tempos em tempos, o autor Gosho Aoyama introduz algum novo elemento ou personagem para retomar a trama do Conan contra a misteriosa organização, como quando criou a personagem Ai Habara, uma mulher que sofreu o mesmo rejuvenescimento do Conan, mas logo depois as histórias voltam para o tradicional “mistério da semana”.
Embora Detective Conan não tenha sido valorizado em sua estreia na Shonen Sunday -- a revista preferiu estampar na capa a imagem de um jogador da Seleção Japonesa em vez do detetive mirim --, rapidamente Conan Edogawa caiu no gosto do público japonês. Não chega a ser uma surpresa, até porque o Japão adora histórias de detetive e tem como grande expoente da literatura Ranpo Edogawa, autor de livros de mistério. A consagração definitiva para Detective Conan veio em 1996, quando o estúdio TMS produziu a série animada transmitida na Nippon TV, emissora japonesa.
Até hoje Detective Conan é um dos três animes mais assistidos do país, normalmente disputando o segundo lugar com Chibi Maruko-chan. Só não supera o (imbatível) Sazae-san, série que já mencionamos na matéria sobre os animes mais assistidos do Japão. E como se não bastasse o anime e centenas de produtos licenciados (de tempero de arroz a bonequinhos), anualmente a TMS lança nos cinemas japoneses um longa-metragem de Detective Conan, sempre com excelentes bilheterias.
Detective Conan é dono de um currículo invejável, composto de 1050 episódios exibidos semanalmente na televisão, 56 aberturas diferentes, exibição em dezenas de países, 27 filmes, 19 especiais e OVAs, um live-action com atores japoneses etc. E mesmo sendo gigante no Japão, o pobre garoto nunca conseguiu ser um sucesso em países como o Brasil. Por que será?
Trajetória atrapalhada no Brasil
Durante os anos 1990 era bastante comum os animes ganharem uma exibição em toda América Latina. Grandes sucessos no Brasil como Os Cavaleiros do Zodíaco, Sailor Moon e Dragon Ball vieram todos de nossos vizinhos, com as mesmas adaptações e censuras. Embora Detective Conan tenha sido exibido no final da década em países como Argentina, México, Colômbia e Chile (onde inclusive foi um grande sucesso), a produção não chegou a dar as caras por aqui. Um possível motivo para isso foi o fim da Rede Manchete, que em 1997 já estava bastante mal das pernas e viria a morrer em pouco tempo. Lembrando que a febre dos animes deu uma abaixada no final dos anos 1990 e só reviveria em 1999, com a chegada de Pokémon.
No começo dos anos 2000 o anime de Detective Conan chegou aos EUA, mas não sem antes passar por cortes bem pesados no conteúdo (afinal, a versão japonesa mostra sem pudor as crianças em contato com cadáveres pingando sangue), além das já esperadas mudanças nos nomes. A própria série perdeu o título e acabou sendo chamada de Case Closed (“Caso Encerrado” em português). Na época havia uma conversa para trazer essa versão ao Brasil, mas o plano acabou morrendo na praia assim como outros animes bastante prometidos, como a primeira temporada de Pretty Cure e Magical Do-Re-Mi.
O anime não ter chegado à televisão brasileira é um mistério, até porque Detective Conan tem o gostinho de anime de fim de tarde da Manchete, mas o mangá nunca ter sido lançado por aqui é apenas um reflexo do nosso mercado. Por mais que o comércio de mangás no Brasil tenha números respeitáveis, há uma clara preferência por shonens de lutinha (Naruto, Demon Slayer) por venderem mais, deixando de lado histórias mais variadas. Para completar o pacote, o mangá de Detective Conan já ultrapassou os 100 volumes, tornando praticamente inviável que uma editora publique por aqui uma coleção tão grande.
Mas essa história triste do Brasil sem um detetive Conan para chamar de seu chegou ao fim em meados de 2008, quando o Brasil teve pela primeira vez um material oficial da franquia em território nacional. Lançado originalmente no Japão em 1997, o primeiro filme de Detective Conan foi lançado em DVD pela Flashstar com uma dublagem realizada pelo Studio Gabia (de Super Campeões 2002). O nome brasileiro que o anime ganhou por aqui? Detetive Conan, sem muita surpresa. No filme, Conan precisava decifrar o mistério de um criminoso que pretendia explodir várias localidades, e no fim precisa salvar sua amada de um shopping prestes a ir aos ares.
Embora a tradução do longa tenha algumas escorregadas e frases sem sentido, a interpretação dos personagens deu uma personalidade bem nacional à produção. Entre as principais vozes da versão dublada estavam Fábio Lucindo (o Shinji de Evangelion) como Shinichi Kudo, Pedro Alcântara (Yuuta de Jujutsu Kaisen 0, confira entrevista com o dublador aqui) interpretando a versão mirim do personagem título, e Tatiane Keplmair (Sakura de Naruto) como o par romântico Ran Mori. Não se tem informação sobre o sucesso de vendas do DVD, mas como os demais longas não foram lançados, podemos imaginar que não repercutiu como o esperado.
Isso é uma pena, afinal os filmes são uma das melhores formas de se introduzir uma pessoa ao universo do detetive japonês. Cada longa tem uma história fechada, com resolução do crime naquele tempo do filme, e na introdução ainda há uma explicação sobre a sinopse do anime para situar o espectador. Ou seja, mesmo um leigo consegue chegar no filme e entender perfeitamente a aventura que vai acontecer.
A situação está mudando (aos poucos)
Por sorte, tempos depois mais filmes de Detective Conan foram lançados no Brasil, dessa vez para compra e aluguel em plataformas digitais. Para a alegria dos (poucos) que assistiram ao primeiro filme em DVD, a equipe de dublagem manteve quase todas as principais vozes do primeiro filme como foi o caso do Pedro Alcântara como Conan Edogawa. Foram lançados até o momento cinco filmes de Detective Conan, e estão todos disponíveis com dublagem no HBO Max. Um deles inclusive é Lupin III vs Detective Conan, um celebrado encontro do maior detetive dos animes com o maior ladrão do entretenimento japonês.
No fim, apenas em 2020 os fãs brasileiros puderam ter acesso ao anime original de Detective Conan. Em setembro daquele ano o serviço de streaming Crunchyroll colocou algumas dezenas de episódios, e atualmente temos 123 episódios disponíveis na plataforma, com legenda em português. Como o anime ultrapassou a marca dos mil episódios, ainda falta muita coisa ainda para ficarmos em dia com o Japão.
Vítima de vários pequenos detalhes logísticos de licenciamento e exibição, Detective Conan é mais conhecido do que assistido por aqui. A imagem de Conan Edogawa até é identificada por muitos otakus, mas poucos deram uma chance a esse anime para descobrir o que tanto encantou os japoneses. Caso goste de histórias de detetive na linha Agatha Christie ou das histórias de Sherlock Holmes, o anime de Detective Conan é um prato cheio com casos dos mais variados tipos, sempre com resoluções inteligentes e/ou improváveis. E quem sabe teremos mais coisa chegando agora que Zero's Tea Time, o derivado sobre o agente triplo, está chegando à Netflix? Não custa nada torcer.