Trigun Stampede atraiu muitas opiniões negativas quando anunciado: reclamaram da decisão de se produzir um anime em computação gráfica e até do novo penteado à la Xuxa Meneghel do protagonista Vash. Mas talvez o principal ponto criticado foi: qual a necessidade de pegar um anime famoso de 1998 e refazê-lo em 2023? A resposta é simples: embora clássico, a antiga versão de Trigun está longe de ser a mais fiel à história original.
Com um mangá e dois animes muito diferentes entre si, a franquia Trigun está aí para provar que é possível recontar uma mesma história de inúmeras maneiras, às vezes até flertando com outros gêneros. Será que você deve dar uma chance à essa nova versão do estúdio Orange (de Beastars)? Para chegar a essa resposta, talvez seja necessário traçar uma linha do tempo mostrando como Yasuhiro Nightow criou esse bangue-bangue tão charmoso.
O Furacão Internacional
Vash - o Estouro da Boiada - é uma pessoa muito marcante. Não só nesse futuro distópico no qual a franquia Trigun é ambientada, mas mesmo no nosso mundo real: seu visual clássico envolve um sobretudo avermelhado, um par de óculos arredondados na cor amarela e um penteado atrevidamente exótico usando quilos de gel e pomada para cabelo. Suas roupas largas e cheias de elementos parecem a cara dos quadrinhos americanos dos anos 1990, e não é à toa: o autor Yasuhiro Nightow se inspirou no herói Spawn para construir o estilo de seu primeiro protagonista.
A história de Trigun não é inovadora e muito menos revolucionária, pois acompanhamos as aventuras de Vash Stampede (traduzido como Vash, o Estouro da Boiada pela nossa dublagem) em um mundo futurista meio desértico, com poucas cidades habitáveis e muita pobreza. O pistoleiro foi apelidado de “Furacão Humanoide” por sua capacidade de causar desgraça por onde passa, então ele acaba sendo seguido por Meryl Stryfe, uma funcionária do setor de seguros de uma empresa que quer avaliar os estragos dessa figura tão distinta. Mas embora tenha uma gigante recompensa por sua cabeça, os tais 60 bilhões de dólares duplos repetidos em todo episódio, tudo não passa de um mal entendido porque Vash segue uma filosofia de paz e amor, evitando o conflito a todo custo. Em meio à inevitável química entre o furacão humano e a agente de seguros, também vamos descobrindo mais sobre o passado de Vash e a existência de seu irmão, o controverso Knives.
O anime de Trigun fez muito sucesso e se tornou um dos clássicos dos anos 1990, mas poucos sabem que a versão original era um pouco diferente do que muitos assistiram. Yasuhiro Nightow estreou no mundo dos mangás em uma adaptação em quadrinhos do jogo Samurai Shodown, e após abandonar uma carreira de corretor de imóveis o autor pegou várias referências norte-americanas e criou o mangá Trigun para a revista Shonen Captain da Tokuma Shoten no ano de 1995. Infelizmente o almanaque japonês acabou sendo cancelado pela editora e Nightow foi de mala e cuia continuar a história de seu mangá na revista Young King Ours da editora Shonen Gahousha, agora com o título Trigun Maximum. O título foi encerrado em 2007, após 14 volumes.
No meio da mudança de editora surgiu a proposta da Mad House (de Takt Op. Destiny)para criar um anime de 26 episódios de Trigun. Hoje em dia parece estranha a decisão de adaptar uma série de um autor iniciante com cerca de 20 capítulos publicados até o momento, mas na época fazia total sentido. Para compensar a falta de histórias canônicas, o diretor Satoshi Nishimura (de Hajime no Ippo) recheou a série com aventuras inéditas e casos não mostrados no mangá. Ou seja? Fillers! Para se ter uma ideia, só lá pelo episódio quatro do anime original que Trigun começa a seguir o material original de Nightow, adaptando o embate entre Vash e os irmãos Nebraska. O anime antigo toma seu tempo para contar a história em um ritmo mais lento, e a construção do protagonista como um pistoleiro pacífico é demonstrada no próprio roteiro, fazendo Vash resolver muitos casos sem um único tiro.
Talvez por suas referências muito ocidentais Trigun conquistou o público otaku dos EUA. O anime lá é tão aclamado quanto um Cowboy Bebop, outra produção que pega emprestado elementos de produções americanas para construir um anime de ritmo diferente. Após fazer sucesso por vias não oficiais, Trigun chegou à televisão norte-americana em 2003 durante aquela explosão dos animes, e desde então garantiu um espaço cativo no coração dos otakus. No Brasil a coisa seguiu um caminho parecido, mas muito particular à nossa cultura.
A primeira vez que vi Vash na minha frente foi andando por um evento de anime, lá pelos idos de 2001. No meio de vários cosplayers de animes famosos na televisão aberta, como Dragon Ball Z e Card Captor Sakura, aquela roupa avermelhada e o topete loiro chamavam muita atenção. E mesmo não sendo exibido oficialmente no Brasil naquele momento (o anime de Trigun só seria transmitido em 2006 no Cartoon Network), todo mundo parecia conhecer Vash de alguma forma, seja por matérias em revistas especializadas ou através de meios “alternativos” de consumo de animes.
Se hoje em dia é possível acompanhar de forma oficial um anime simultaneamente com a exibição japonesa, no final dos anos 1990 era necessário um esforcinho extra (e contatos). A TV brasileira ficou responsável por exibir os desenhos japoneses mais populares, mas os animes com conteúdo mais denso e/ou violentos tiveram sua “palavra” espalhada por fansubs, clubes de fãs que legendavam animes de forma analógica e os distribuíam em fitas VHS que eram copiadas e multiplicadas em encontros e eventos de nicho.
Berserk, FLCL, Kare Kano e Cowboy Bebop eram alguns dos mais desejados pelos fãs brasileiros nessa época, e Trigun fazia parte dessa galeria de favoritos. O próprio formato do anime original de Trigun parecia ideal para essa forma de compartilhamento de conteúdo pelos fãs: a série produzida pela Mad House era composta por muitos episódios com histórias que se encerravam ali mesmo, facilitando o consumo de quem via “picadinho” pelas dificuldades de se obter mais episódios. Por sorte não tardou para a série chegar oficialmente de todas as formas possíveis: o Cartoon Network exibiu uma versão dubladinha de Trigun enquanto o mangá foi publicado em sua totalidade pela editora Panini.
Trigun Stampede veio aí
Após 13 anos sem novas produções no universo de Trigun, a última sendo um filme produzido em 2010, o anúncio de Trigun Stampede surpreendeu a todos, principalmente pelas mudanças que foram feitas. O roteiro assinado por Yousuke Kuroda (de My Hero Academia) pegou a história do mangá original, tirou um pouco da galhofa exagerada do começo do anime clássico e transformou Trigun em algo mais “sério”.
Já na primeira cena do reboot acompanhamos como Vash e seu irmão Knives escaparam de uma nave segundo antes de sua destruição, e no decorrer das cenas somos apresentados a esse mundo melancólico com humanos tentando sobreviver a um inóspito ambiente desértico e com inspiração de Velho Oeste. Não que o anime seja totalmente sério e o Vash agora tenha se transformado em um personagem frio e calculista. Para a alegria dos otakus, o personagem continua bem humorado e fugindo de conflito com bom humor, mas o novo anime deu um tom diferente para quem estava esperando o clima do original.
Embora alguns fãs tenham chamado a nova série de “adaptação infiel” por trair o anime original (que já era uma livre interpretação do mangá), a ideia de criar algo diferente e familiar veio do próprio autor Yasuhiro Nightow. Durante um painel realizado no evento Anime NYC 2022, o produtor Kiyotaka Waki revelou um pedido inusitado do criador de Trigun: ele pediu que o profissional assistisse a todos os filmes da Marvel. A forma como o universo cinematográfico da editora pegou personagens clássicos e retrabalhou suas características para criar novas histórias encantou o autor, e o produtor embarcou na proposta.
Para ele, Vash é como se fosse um herói como o Batman ou o Homem-Aranha, então sua origem e sua ambientação podem sofrer alterações desde que se mantenha o espírito do original. E esse é o ponto: Trigun Stampede consegue manter bem o universo de Nightow. Com algumas mudanças aqui e ali, como Meryl que agora é uma jornalista em vez de analista de seguros, o novo anime tem como proposta contar a história completa de Trigun (incluindo a continuação Trigun Maximum) de uma forma arrebatadora até para os fãs do antigo anime.
E a maior surpresa de Trigun Stampede é a animação totalmente feita em computação gráfica. Por mais que seja um recurso muito criticado pelos “otaku raiz” (temos até uma matéria sobre isso), o estúdio Orange possui vasta experiência nesse formato após Houseki no Kuni e Beastars. Trigun Stampede tem aquela animação que em muitos momentos você se questiona “espera, eu não estou vendo um anime em 2D?” de tão parecida que é com uma produção no estilo tradicional. O fato de tudo ser feito em 3D facilita as cenas de ação, que agora brincam com os ângulos de câmera e com coreografias mais trabalhadas e impossíveis de se fazer desenhando quadro a quadro.
Com tudo isso, Trigun Stampede acabou sendo uma surpresa positiva nessa temporada de animes. As modernidades propostas pelo studio Orange podem ser vistas como barreiras para quem era fã do antigo ou para quem desgosta de animação computadorizada, mas quem ultrapassar esses “detalhes” vai encontrar um anime charmoso, bem divertido e capaz de introduzir a franquia para novatos e ao mesmo tempo agradar antigos fãs do Estouro da Boiada.
Como assistir?
Ao contrário do passado em que era quase uma epopeia para assistir ao Trigun original, dessa vez o trabalho foi bastante facilitado: Trigun Stampede está sendo lançado semanalmente na Crunchyroll junto da exibição japonesa, com legendas em japonês. A plataforma também está disponibilizando toda semana um episódio dublado, com um elenco de voz diferente do primeiro anime: sai Alexandre Moreno no papel principal e entra Caio Guarnieri.
Se quiser a versão em quadrinhos, aí é mais complicado: a editora Panini lançou há muito tempo o mangá e ele se encontra fora de catálogo. Mas quem sabe o novo anime não estimula a editora a republicar por aqui, não é mesmo?
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