Zom 100 | Quando o mundo capitalista é mais apocalíptico que zumbis

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Zom 100 | Quando o mundo capitalista é mais apocalíptico que zumbis

Que tal usar um anime de zumbis para criticar como somos reféns do trabalho?

Omelete
8 min de leitura
18.07.2023, às 09H08.

Mesmo se não fizesse parte dessa temporada fraquinha de estreias, ainda assim Zom 100 seria um dos destaques do ano por ser a obra certa na época certo. À primeira vista, o novo anime da Crunchyroll e Netflix parece ser apenas mais uma das trocentas produções sobre apocalipse zumbi e batalha de sobrevivência dos humanos, mas Zom 100 dá um passo além e utiliza esse mundo de fantasia para criticar algo muito real: o quanto o ser humano é um zumbi dentro de um mercado de trabalho opressivo. E em tempos de tanta crise, burnout e ansiedade, temos aqui uma mensagem importante para ouvir.

Um mundo sem zumbis… mas também sem trabalho

A estreia de Zom 100 levou muitas pessoas a elogiarem publicamente o anime nas redes sociais, e muitos compartilharam um trecho em especial que sintetiza sua premissa. Nele, vemos o protagonista Akira Tendo correndo de uma horda de zumbis famintos e, durante a fuga, ele percebe que a existência de um ataque de mortos-vivos fará com que ele nunca mais precise trabalhar. De repente seu crachá da empresa sai voando de seu pescoço até ser destroçado pela boca de um zumbi, e é aí que o desespero se torna esperança.

Akira corre com os braços abertos, como se estivesse cruzando vitorioso uma linha de chegada em uma maratona cansativa. Durante a fuga o ex-proletário consegue matar alguns daqueles zumbis, e o sangue que esguicha das criaturas não é um vermelho, e sim tintas com cores alegres como amarelo ou azul. O cenário sem vida ganha cores, a vida sem alegria ganha sorrisos e aquele se torna o melhor dia de sua vida. A explosão de êxtase é tanta que ele até arrebenta a borda da tela. Akira Tendo está feliz demais!

A história na verdade começa apresentando a vida de adulto de Akira a partir do momento que ele é contratado por uma produtora de comerciais. Tudo ali parece promissor para esse jovem adulto, e já no primeiro dia ele até curte um happy hour regado a muita cerveja com seus novos colegas de trabalho. Na hora de se despedir, Akira percebe que todos vestem novamente o crachá da empresa, e aí o pesadelo começa: eles não estavam voltando para suas casas, e sim para a firma porque havia muito trabalho pra ser feito. Nesse ponto Akira descobre ter sido contratado por uma “black company”.

O termo não é muito conhecido no Brasil, até porque aqui costumamos chamar de “emprego arrombado” mesmo, mas black company (ou “black kigyou” em japonês) é uma expressão usada no Japão para definir empresas com jornadas de trabalho insalubres e doentias. Ali você não tem hora para ir embora, normalmente dorme no emprego e acaba não tendo tempo nem para um almoço ou lanchinho. Em meio a crises de ansiedade e burnouts frequentes, essas empresas ainda assediam moralmente funcionários e esse comportamento é considerado “normal” por lá, por se tratar de uma sociedade muito comprometida com o trabalho.

Akira logo constata que por causa das horas extras frequentes ele passou dias sem dormir em sua cama, e o brilho de sua juventude foi se apagando aos poucos. Mas essa vida de morto vivo chega ao fim quando estoura um verdadeiro apocalipse zumbi no Japão, e esse evento foi capaz de trazer alegria para Akira. Agora ele não precisa mais trabalhar, pode tomar uma cervejinha às oito da manhã e também está liberado falar o que pensa para as pessoas ao seu redor. E ao perceber que sacrificou muito de sua vida pelo trabalho, Akira escreve uma lista de 100 coisas que ele quer fazer antes de se tornar um zumbi, como virar a noite bebendo com um amigo ou passar um tempo com seus pais.

Zom 100 foi criada por Haro Aso, mangaká já bem conhecido por outros trabalhos no meio otaku. Autor de Alice in Borderland, Haro é uma pessoa que entende bem sobre escrever histórias para uma demografia mais adulta, além de se aprofundar bem na cabeça do público alvo. Para ajudá-lo nesta história de zumbi ele conta com o desenhista Kotaro Takata, que trabalhou em mangás menos expressivos.

Com o sucesso de Zom 100 nas páginas da revista Sunday GX Comics, novos projetos foram sendo anunciados, como um longa-metragem em live action (que chega logo mais na Netflix) e um anime produzido pelo estúdio novato Bug Films. Inclusive, a animação foi vista por desconfiança por alguns fãs por se tratar de uma produtora sem histórico, mas foi só saírem os trailers que a percepção foi mudando: que anime espetacular!

Que delícia nunca mais trabalhar

Logo de cara já percebemos que o diretor Kazuki Kawagoe não estava de brincadeira. A primeira cena do anime coloca Akira assistindo a um filme de zumbi no qual uma pessoa é perseguida em meio a um apocalipse. O trecho é representado com cores pesadas e com uma barra preta nas bordas da tela para mostrar que aquilo é um filme. Porém, ao começar a trabalhar na empresa insalubre, o diretor também colocou todos esses elementos visuais para retratar o dia a dia de Akira. Além das bordas na tela, toda a cor escolhida para esse trecho está ali não só para mostrar que não tem qualquer diferença entre Akira e o protagonista do filme, pois ambos estão em uma história cercados de zumbis e pessoas sem motivação.

Zom 100 não é uma obra de sutilezas, até porque os próprios personagens comentam isso dos funcionários parecerem zumbis, mas o anime brilha na forma como trabalha artisticamente suas guinadas. A partir do momento que estoura o apocalipse zumbi e Akira percebe que está livre, a animação ganha vida, as bordas desaparecem e o mundo fica repleto de cor mesmo em meio ao caos. Não só é uma nova fase na vida do personagem principal, mas parece até mesmo um novo anime na nossa tela!

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A série é uma coletânea de denúncias óbvias, mas pertinentes. Zom 100 se mostra como uma dura crítica a como o mercado está matando os trabalhadores, como quando vemos o descuidado protagonista não se importando se será atropelado por um carro, ou a frustração de ver que as promoções e demissões dentro da empresa não seguem uma lógica justa, e sim de interesses. Além disso, o anime inevitavelmente nos faz pensar no quão duro é você precisar de um apocalipse zumbi para decidir tirar um tempo de descanso, ou mesmo em como é difícil correr atrás dos sonhos que temos.

Um outro personagem que será apresentado em breve no anime é Kenichirou Ryuuzaki. O rapaz é um antigo colega de Akira na época do colégio, e por ser muito comunicativo acabou conseguindo um emprego feliz no setor de vendas. Quer dizer, pelo menos para Akira parecia um trabalho feliz, pois Kenichirou não precisava acampar no trabalho como ele nem nada. Após o reencontro dos dois durante a calamidade, Kenichirou se abre e revela que sempre sonhou com a carreira de comediante, mas não teve oportunidade de levar isso para frente porque -adivinhe- ele precisou entrar no mercado de trabalho tradicional para pagar suas contas. É a clássica pergunta: você trabalha com o que gosta ou com o que você precisa? Ou com o que apareceu na sua vida? Melhor: o mundo atual permite trabalharmos com o que nos dá prazer?

Atualmente Zom 100 conta com 14 volumes publicados no Japão e, segundo os fãs, há uma queda na qualidade da história mais pra frente. Talvez por causa do sucesso do mangá, os autores precisaram alongar desnecessariamente a narrativa e isso levou a alguns pontos medianos na história, mas ainda vai levar um tempo até chegar nesse momento no anime. No decorrer da temporada veremos ainda Akira indo atrás de realizar suas 100 vontades, e também encontrando outras pessoas sobreviventes desse mundo apocalíptico. A história é bastante habilidosa na hora de apresentar pessoas que são afetadas pelo mundo capitalista atual, mesmo que cada um em uma posição social diferente. E a série também sabe criar bons antagonistas, pessoas que querem acabar com tudo por rancor ou pessoas que desejam manter os privilégios de uma sociedade injusta.

Não é surpresa o sucesso de Zom 100, a mensagem passada pela série é poderosa. As crises econômicas e a precarização do mercado de trabalho criaram um cenário terrível para o trabalhador, que se vê obrigado a produzir mais e ser remunerado cada vez menos. E nesse processo vão se acumulando problemas de saúde graves e a falta de momentos para curtir com família e amigos. Tudo funciona como uma engrenagem, e às vezes é difícil se enxergar fora desse círculo vicioso, e de certa forma é isso que Zom 100 faz. Precisou uma situação altamente improvável acontecer, um apocalipse zumbi, para Akira perceber que não estava tendo tempo para ele mesmo.

Muito além de uma crítica social pertinente, Zom 100 também é um anime muito divertido e bem feito. Com uma direção inspirada, utilização criativa de cores e uma reflexão bem evidente, essa série já se tornou uma das estreias mais importantes dessa temporada e, se seguir o ritmo da estreia, tem tudo para ser um dos melhores animes do ano.

Como acompanhar Zom 100?

Um dos animes de acesso mais facilitado da temporada, Zom 100 está tendo seus episódios disponibilizados semanalmente na Netflix e na Crunchyroll. Por enquanto somente com legenda em português, mas podemos esperar uma dublagem para breve. A Netflix também lançará em agosto o longa metragem em live-action baseado no mangá, então pode ser uma oportunidade de mostrar essa história para quem não é tão fã de anime.

E se você quiser acompanhar a versão original em quadrinhos, o título está saindo no Brasil pela editora JBC com o título Zom 100 - Coisas para Fazer Antes de Virar Zumbi. Atualmente já temos dois volumes publicados.

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