Nos últimos dias a Netflix tem divulgado pôsteres com os visuais dos personagens do live action de Yu Yu Hakusho, e com isso o serviço de streaming conquistou uma quase unanimidade: todos estão reclamando muito do que foi mostrado até o momento. Os fãs reclamaram da falta de gel no cabelo de Yusuke, da aparência andrógina de Kurama, da ausência de lente no olho do Hiei e de… bem… todo o Kuwabara. Perucas e penteados à parte, essa reação negativa apenas demonstra uma característica comum que percebemos há muito tempo nos otakus ocidentais, a rejeição a adaptações.
Por que fazer um live action?
Os fãs de anime e mangá foram surpreendidos quando, em dezembro de 2020, a Netflix soltou um post em suas redes sociais anunciando a produção de um live action de Yu Yu Hakusho. Países como Japão e Brasil vibraram com a revelação, até porque a série é bastante aclamada nesses territórios, mas muitos lugares do mundo ficaram meio “tá, mas o que é Yu Yu Hakusho?”.
Embora seja um dos maiores expoentes dos shonen de lutinha dos anos 1990, a ponto de rivalizar a soberania de Dragon Ball durante seu auge, Yu Yu Hakusho está longe de ser a obra mais conhecida pelo público mais novo de fãs de anime e mangá. Se você parar um otaku em qualquer rua do mundo e perguntar quem é Yoshihiro Togashi, é muito mais fácil ouvir como resposta “é o autor de Hunter x Hunter” do que um comentário sobre sua primeira série famosa.
Yu Yu Hakusho começou a sair nas páginas da Shonen Jump em 1990 e é um exemplo de série que soube mudar de acordo com a recepção do público. Se no começo a trama apresentava as aventuras do detetive espiritual Yusuke Urameshi, um adolescente mal encarado que resolvia casos sobrenaturais após morrer antes do esperado, no decorrer dos capítulos a obra se tornou uma tradicional série de porrada com torneios, mortes inesperadas e poderes chamativos.
O mangá foi adaptado para anime de forma muito competente pelo Studio Pierrot (de Naruto), e este acabou sendo transmitido no Brasil pouco tempo depois em 1997 pela Rede Manchete, que ainda buscava um novo anime para manter o sucesso de Os Cavaleiros do Zodíaco. Com uma dublagem incluindo muitos memes (décadas antes da invenção da palavra “meme”) e um protagonista bem malandro, Yu Yu Hakusho se tornou uma obra muito querida no Brasil, rivalizando com a nostalgia de animes como Shurato ou Sailor Moon.
Em outras partes do mundo, no entanto, a situação foi um pouco diferente. Houve uma tentativa de emplacar Yu Yu Hakusho no ocidente nos anos 2000, dessa vez para aproveitar o sucesso de Dragon Ball Z, mas o Ghost Files (nome que a série recebeu) passou longe de se equiparar em sucesso com as aventuras de Goku e os demais guerreiros criados por Akira Toriyama. No fim, Yu Yu Hakusho acabou sendo apenas mais um entre os animes lançados no começo do século.
Por favor, não entenda isso como uma crítica a Yu Yu Hakusho! Seria bastante desonesto desmerecer um dos melhores shonens de lutinha de todos os tempos, mas é fato que a série acabou ficando para trás num contexto global. Dragon Ball ainda mantém sua força mesmo entre os mais jovens, até porque Dragon Ball Super ajudou a renovar o público, mas Yu Yu Hakusho ficou no passado com seu anime na proporção 4:3 e colorização feita à mão. Até houve uma tentativa de reviver a franquia em 2018, quando o Pierrot animou dois episódios em OVA com histórias não mostradas no anime original, mas ficou por isso mesmo.
Observando esse cenário de “esquecimento”, e sabendo que Hunter x Hunter do mesmo autor é uma série de muito prestígio entre os fãs, faz sentido que a Netflix fosse atrás da primeira série do Togashi. E com o advento da tecnologia de computação gráfica, por que não transformar Yu Yu Hakusho em uma série com atores de verdade? Pois bem, o problema começou aí.
Otakus contra Live Action
“Cachorro picado por cobra tem medo de linguiça” é uma expressão que sintetiza a má recepção que as adaptações live action têm por parte dos fãs. Qualquer anúncio de live action é um incentivo para relembrarem as piores adaptações de anime e mangá que já foram concebidas pela humanidade, como os terríveis Dragon Ball Evolution e o Death Note da mesma Netflix. O problema é que essa rejeição se aplica até mesmo a produções boas, como foi o caso do injustiçado Speed Racer das irmãs Wachowski.
Este exemplo é muito emblemático. Em 2008 as diretoras pegaram a clássica franquia de corrida Speed Racer e a transformaram em uma viagem repleta de fundos psicodélicos e atuações canastronas. O filme foi um fracasso de público e encerrou qualquer chance de uma possível continuação (ou seja, Speed Racer nunca descobrirá que o Corredor X é na verdade seu irmão Rex Racer, sósia do protagonista da série LOST). Décadas depois, a justiça cinematográfica foi feita e hoje percebemos que, com todas aquelas loucuras e computação gráfica, o filme foi uma transposição bastante fiel do espírito do anime clássico.
Curiosamente, essa rejeição a qualquer live action parece ser um traço mais comum nos otakus ocidentais. No Japão já foram lançadas centenas de adaptações em live action das mais inimagináveis franquias possíveis, passando por filmes, novelas e séries. Não há limites para a criatividade dos estúdios japoneses, que conseguem adaptar mangá de romance a história em que titãs tentam destruir cidades cercadas. E, mesmo quando são bem distintas, ainda conquistam o público.
Uma característica comum dessas produções é o quanto elas têm liberdade de contar algo diferente da versão original. Não é só como se o público soubesse que é impossível adaptar com fidelidade uma história em quadrinhos, mas também como se gostasse de ver essas reimaginações de suas séries favoritas. Sempre achei curioso como os filmes de Death Note japoneses foram um estouro de bilheteria contando uma versão totalmente diferente do mangá original, misturando as bases das séries que conhecemos com uma história que nos surpreende.
Essa aceitação das limitações e das liberdades criativas parece funcionar de um jeito oposto no ocidente. Aqui o otaku costuma exigir uma reprodução fiel do que foi visto nos quadrinhos ou no anime, um copia e cola que nunca dará certo porque cada mídia tem características diferentes. O Death Note da Netflix é visto como um horror não por ser o filme medíocre que é, mas sim por fazer algo diferente da história original ao apresentar um L pouco inteligente e um Light covarde. Mesmo se o filme colocasse outros nomes nos personagens e fosse algo na linha “o que aconteceria se o Death Note caísse nas mãos de um estudante americano?”, ainda assim haveria a reclamação por não serem os mesmos personagens do cultuado anime.
Todas as críticas a respeito da caracterização dos personagens de Yu Yu Hakusho anunciados pela Netflix parecem esquecer que uma série de streaming não é para ser uma apresentação de melhor cosplay. Se na hora de fazer a fantasia muitos cosplayers se esforçam para transpor para realidade todas as roupas, acessórios e cabelos impossíveis de suas séries favoritas por mais absurdas que sejam, uma série de televisão pode querer ter um pé no chão.
Mas está tão ruim assim?
Se a intenção da série de Yu Yu Hakusho for mostrar a série ambientada no presente, não podemos exigir que o Kuwabara ostente o mesmo penteado que era moda entre os delinquentes dos anos 1980 e 1990. O mesmo precisa ser dito sobre a aparência de Kurama e Hiei, que na história original são youkais que se misturaram aos humanos, sem nada tão chamativo.
Houve quem usasse o pôster da peça de teatro de Yu Yu Hakusho (a imagem está na matéria), esta bastante fiel aos visuais do anime, como justificativa para criticar a série, mas a comparação é injusta. Peça de teatro de anime e mangá é produção para o nicho dos fãs, então faz sentido que seja algo fiel, mesmo que inverossímil. A linguagem do teatro também permite qualquer tipo de exagero, algo que funciona diferente em uma produção audiovisual.
Nem sempre um visual fiel ao original pode ser garantia de uma boa história, basta lembrar que Cowboy Bebop emulou o visual dos atores e a clássica abertura para, no fim, ser uma produção “sem alma”, uma repetição apenas estética sem o espírito do anime original. E o que falar do filme de Fullmetal Alchemist, objeto de chacota até hoje por conta da peruquinha do protagonista Edward Elric?
Os primeiros visuais mostrados para Yu Yu Hakusho da Netflix não estão ruins, apenas diferentes do original. Temos muitos exemplos de live actions japoneses que conseguiram manter o mesmo clima do original, temos até uma matéria aqui no Omelete relembrando essas obras. Claro, não podemos descartar as chances de Yu Yu Hakusho da Netflix se revelar uma grande porcaria, precisamos trabalhar também com essa possibilidade, mas acredito que o projeto de Yu Yu Hakusho é algo que merece nosso voto de confiança.
É muito positivo, por exemplo, que a produção seja feita por uma equipe japonesa, afinal isso pode ser uma garantia de que a “energia” de Yu Yu Hakusho seja respeitada. O diretor Sho Tsukikawa, responsável pela série, já trabalhou com outras adaptações de animes e mangás para live action, e ele ainda contará com a ajuda da Robot (de Alice in Borderland) nos efeitos visuais.
Com isso, talvez o melhor conselho para os fãs é “torcedores, calma”. Yu Yu Hakusho da Netflix será uma nova versão para atrair novos fãs, mas o anime e o mangá original continuarão ali intactos para o seu deleite. Yu Yu Hakusho sempre foi um reflexo de seu próprio tempo, então é interessante que o live action esteja aparentemente tentando transportar a obra para o presente.
Se bem feita, poderemos celebrar com mais pessoas entrando em contato com essa excelente história de Yoshihiro Togashi. Caso seja ruim, poderemos ao menos nos divertir falando mal e recomendando o original para as pessoas. No final das contas, todos ganhamos.