Ler é uma escolha política. Aliás, o simples consumo de toda e qualquer peça cultural é um ato político. Se isso fosse mentira, governos extremistas ditatoriais não se esforçariam tanto em censurar e marginalizar manifestações artísticas que incentivem uma reflexão mais profunda do público que as consome. Música, cinema, literatura, dança; todas as artes transmitem, cada uma à sua maneira, uma mensagem a ser analisada e absorvida pelas pessoas que alcançam. Nos quadrinhos, isso não poderia ser diferente. Unindo narrativas visuais à profundidade da linguagem literária, as HQs têm uma maneira única de transmitir suas mensagens e, em seu cerne, são inseparáveis do contexto político em que foram criadas.
Transformar política em gibi não é algo exatamente recente. Alan Moore, visto por muitos como um dos maiores quadrinistas da história, fez isso com maestria ao longo de toda a sua carreira, mais especificamente em V de Vingança e Watchmen, obras fundamentalmente adultas e críticas, publicadas há mais de 30 anos. Mas é nas histórias consideradas infantilizadas que comprovamos essa ligação inseparável da política e dos quadrinhos. Quando olhamos para as origens de Superman, Capitão América, X-Men, Mulher-Maravilha e tantos outros é que entendemos que, desde o início da era dos super-heróis, os gibis são uma mídia politizada.
Embora haja um esforço por parte do público e de alguns criadores de conteúdo de espalhar a falácia que o discurso político nas HQs é um fenômeno moderno, os maiores personagens das páginas nasceram das ideias críticas de seus autores, carregando seus sentimentos para as páginas. Criado por Joe Shuster e Jerry Siegel no final dos anos 1930, o Superman se tornou famoso por enfrentar empresários xenofóbicos e ditadores supremacistas. “Filho” de autores judeus em plena ascensão nazista, Clark é desde então uma metáfora para imigrantes que, a procura de uma vida livre do controle extremo e fundamentalista que crescia na Europa, foram para os Estados Unidos com esperança de uma vida melhor e passaram a usar as cores do país de maneira orgulhosa. Da mesma forma como usava sua superforça para derrotar seres superpoderosos que ameaçavam a vida de inocentes, o kriptoniano via seu trabalho de repórter como uma maneira de manter em xeque aqueles que controlam o status quo. Em um quadro hoje icônico publicado na década de 1940, o Azulão deixa essa convicção clara quando, ao vigiar um suspeito, percebe que ele não se sente confortável próximo a repórteres.
Ao longo dos anos, o Superman continuaria batalhando pelos ideais de verdade, justiça e o jeito americano (que, na época de sua criação, foi concebido como apoio aos oprimidos e igualdade universal de oportunidades). Os autores que assumiram o herói usavam Lex Luthor para criticar práticas preconceituosas e a compra de influência política e viam no General Zod um modelo clássico de líder fascista que usava mentiras e métodos extremos para atrair seguidores. Grande parte dos vilões menores do kriptoniano são alegorias para o ódio, intolerância e extremismo. Autores como Grant Morrison, George Pérez, Tom King, Paul Cornell, Mark Waid e tantos outros levaram às páginas discursos de aceitação e comunidade, claros para qualquer um que lesse os balões com atenção.
Visto como um oposto ao Superman dentro da própria DC, o Batman também é explicitamente político. Embora usasse um revólver em suas primeiras edições, inspiradas em clássicos pulp mais violentos, o Cavaleiro das Trevas abandonou as armas de fogo em menos de um ano de sua criação, se tornando uma grande voz anti-armamentista na mídia. Mesmo em seus retratos mais violentos, como na saga O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, o Morcegão vê armas de fogo como abomináveis - “a arma do inimigo” - e vive reforçando sua esperança na reabilitação de seus antagonistas. Visto como um vigilante punitivista e violento, a insistência do Batman em sua regra fundamental de combate ao crime foi crucial nas redenções de Mulher-Gato, Hera Venenosa, Senhor Frio e Arlequina, personagem importantíssima na representação de violência contra a mulher e distúrbios psicológicos. Ainda que Bruce Wayne atue assim há mais de 80 anos, não é raro ver fãs do personagem celebrarem quando algum criador decide mostrar uma versão sanguinária do herói.
O paradoxo visto nessa celebração do Batman assassino está presente de maneira ainda mais absurda quando vemos a revista da Mulher-Maravilha, ícone feminista desde seu surgimento nos anos 1940, ser criticada quando traz um discurso pró-feminismo mais enfático. Embora eu esteja longe do lugar de fala apropriado para classificar a importância de Diana no movimento feminista, não deixa de ser chocante ler comentários raivosos de leitores indignados porque a personagem “se tornou” politizada.
Essa contradição acontece também com os X-Men, uma das equipes mais tradicionais da Marvel e da indústria dos quadrinhos de modo geral. Criados por Stan Lee e Jack Kirby como uma representação do movimento pelos direitos civis da população negra dos EUA, os mutantes tiveram em arcos emblemáticos como Deus Ama, o Homem Mata e E de Extinção pontos altos tanto de suas narrativas quanto de suas alegorias, com histórias tocantes que traduziam o preconceito de suas respectivas épocas de maneira extremamente didática. O surgimento de novas pautas sociais como homofobia e perseguição religiosa refletiram no surgimento de títulos como Novos Mutantes e na recente Way of X, ainda inédita no Brasil. Ainda que as histórias do grupo quase sexagenário sempre tenham se baseado em pautas importantes, não é incomum ver, especialmente nos últimos dez anos, declarações de pessoas dizendo que largaram os títulos mutantes porque não querem misturar política com super-heróis.
Mesmo que tenha surgido como uma figura de exaltação patriota, não é raro ver o próprio Capitão América ser envolvido em discussões políticas, criticando até mesmo seu amado EUA. Ao longo de seus 80 anos de existência, Steve Rogers abdicou de qualquer associação ao seu governo (Império Secreto), se tornou um fugitivo nacional por lutar pela liberdade individual (Guerra Civil) e, obviamente, deu vários socos na cara de governantes de discurso extremista. Quando Sam Wilson assumiu o manto, a discussão se tornou ainda mais clara. À época, Rick Remender e Nick Spencer, que escreveram os dois primeiros títulos do ex-Falcão como Sentinela da Liberdade, foram acusados de “matar o Capitão América” ao usar o personagem para tratar de questões raciais e imigratórias, discussões recorrentes para o povo norte-americano.
A aversão contemporânea à inclusão de discussões sociais em títulos de herói está ligada ao cenário político extremamente polarizado presente no mundo todo e têm resultado em respostas desproporcionais. Em 2017, a comunidade dos quadrinhos viveu o auge do movimento Comicsgate, que acusava uma falsa agenda progressista por parte dos grandes nomes da indústria e insinuava que quadrinistas pertencentes a grupos menos representados estavam se inserindo de maneira antiética no mercado. De lá pra cá, grupos e autores que acreditam nas falácias do Comicsgate passaram a criar revistas e histórias excludentes e preconceituosas. Ironicamente, as criações celebradas pelos seguidores do movimento - aqueles que tanto reclamam da politização dos super-heróis - são tão políticas quanto as que tanto criticavam.
Mesmo que sejam vistas como entretenimento puro, as histórias de super-heróis são inseparáveis da política. A crítica feita pelos seus autores sempre estará presente em toda e qualquer obra e, a não ser que ignoremos completamente todo o texto trazido por elas, a consciência política será, felizmente, mais um benefício de ler nossos gibis.