Não é raro ter contato com obras que criam uma curiosa combinação entre gêneros aparentemente opostos, como Star Wars, que levou samurais para o espaço, e Bacurau, que trouxe o velho-oeste para o nordeste brasileiro. Nos quadrinhos, uma mistura inusitada aconteceu em Sweet Tooth, história que parece uma fábula da Disney ambientada no apocalíptico mundo de Mad Max. Prestes a virar uma série pela Netflix com produção de Robert Downey Jr., a HQ se tornou um dos mais cultuados títulos dos anos 2000 graças a um mergulho na natureza humana, que será ironicamente atual em um mundo pós-coronavírus.
Publicada pela Vertigo, o antigo selo adulto da DC Comics, Sweet Tooth se passa em um mundo tomado por uma inexplicável praga que mata boa parte da população. Simultâneo às mortes, começam a surgir crianças especiais, hibridas entre humanos e animais. Um deles é Gus, garoto de 9 anos com galhadas de cervo, que ficou escondido na mata até o falecimento de seu pai. Contrariando a maior regra estabelecida pelo seu velho, ele deixa a floresta após conhecer o Sr. Jepperd, um homem que o salva de uma emboscada armada por dois caçadores. Sozinho e sem saber se virar, o rapaz parte com seu novo amigo em busca da chamada Reserva, local supostamente criado para a proteção dos sobreviventes da praga.
Não são necessárias muitas edições para que a HQ explique ao leitor que esse é um mundo totalmente hostil. Ao deixar a mata, Gus enfrenta perigos e ameaças que nem julgava serem possíveis graças à uma inocência própria de quem viveu totalmente à parte da sociedade. Em pouco tempo, o garoto tem contato com a morte, tanto por combate quanto por doença, e só consegue sobreviver por causa da presença de Jepperd. Antítese do garoto, o homem surge como uma espécie de “brucutu caladão” cujas únicas habilidades estão ligadas à sobrevivência, especialmente a violência.
Porém, o que poderia se tornar uma leitura sombria e fúnebre, se mostra um conto sobre a habilidade humana em se manter de pé em meio à tragédia. Se assim como Jepperd, os sobreviventes desse mundo vivem no limite e estão sempre propensos a cometer barbaridades, existem aqueles que, como Gus, acreditam que o amanhã pode ser melhor e estão dispostos a arriscar sua vida para que seja. Essa dualidade ganha ainda mais camadas conforme a história avança, já que ela dá espaço para perspectivas diversas. Nesse momento, a história deixa de lado qualquer comparação com obras como The Last of Us ou mesmo Logan - que vieram anos após a conclusão da HQ -, pois começa a passear por tramas e gêneros pouco esperados em uma história pós-apocalíptica.
Gus e Sr. Jepperd de Sweet Tooth
Ao longo de 40 edições, o autor Jeff Lemire caminha por uma diversa gama de gêneros e estilos. A trama traz melancolia, ação, horror, e até um pouco de romance, costurando uma história que usa características de cada um desses estilos para manter a expectativa a respeito do destino desses personagens. Usando a jornada intimista de Gus como carro chefe, o quadrinho ainda constrói uma grandiosa mitologia que mistura lendas tribais e ficção científica. Combinação essa que deixa no ar perguntas respondidas pelo roteiro de forma esperta, fazendo com que pequenos eventos vividos pelo garoto-cervo e seus amigos tenham uma repercussão grandiosa nos rumos da humanidade.
O legado de Sweet Tooth
Misturando referências em uma história cuja base está no tênue equilíbrio entre desespero e esperança, com doses cavalares de adrenalina, Jeff Lemire ousou ainda na forma de ilustrar essa jornada. Responsável também pela arte da HQ, por diversos momentos o quadrinista conduziu sua história através de experimentalismo. De flashbacks que geram rimas visuais com o momento presente, a sequências oníricas de sonho profético e até mesmo edições inteiras montadas como livros infantis, o autor canadense criou uma jornada singular e inventiva. Um feito impressionante, considerando que essa foi a primeira HQ longa de sua carreira, que até então contava apenas com graphic novels e minisséries.
Todas essas qualidades fizeram com que Sweet Tooth ganhasse fama como um dos melhores quadrinhos autorais já publicados pela Vertigo, casa de clássicos como Sandman e Hellblazer. O quadrinho catapultou Jeff Lemire, que depois assinou contratos de exclusividade com DC e Marvel. Atualmente trabalhando em praticamente todas as grandes editoras, o quadrinista se dedica tanto a grandes personagens, quanto aos projetos autorais.
A série de Sweet Tooth deve marcar sua estreia em outras mídias, algo que acontecerá em um momento em que a realidade ironicamente conversa com trama do quadrinho. Considerando que a produção ainda está em estágios iniciais, ela deve ser lançada daqui há alguns anos, quando o mundoterá superado uma pandemia global que, assim como na ficção, vitimou milhões de pessoas de maneira inexplicável. Integrando o zeitgeist dessa década que mal começou e já enfrenta uma grande catástrofe, é possível que a jornada de Gus sirva de inspiração para que não abandonemos as esperanças mesmo nos momentos mais difíceis.