Em 1989, um Affonsinho diferente deixava a sala do cinema. Ele havia dançado com o demônio sob a luz pálida do luar e sobrevivido, instigado pelo renascer de um velho herói nas mãos de Tim Burton. Uma vez no lar, a criança obedeceu à tradição do “assisti o filme e agora vou encená-lo com meus brinquedos” e correu para o quarto em poder do novo boneco.
Havia algo errado, porém.
O Batman de plástico – ainda que refletisse a representação do longa-metragem – não parecia conversar completamente com a ideologia que o menino havia aprendido nos quadrinhos.
Determinado, Affonsinho buscou a sacola com os clássicos Comandos em Ação. Um rolo de fita isolante e um pequeno pano preto se juntaram ao projeto. Snake Eyes foi o escolhido para a transformação.
“Eu sou Batman”, disse o novo boneco.
Meu Batman de fita isolante foi o melhor Batman que já brinquei. Ele era a sombra assustadora que o filme de Tim Burton havia mostrado, mas agia como o ninja que os quadrinhos haviam estabelecido, se esgueirando entre os prédios de Gotham (meu quarto) como um enorme morcego do inferno.
Em 1992, Batman: The Animated Series chegou. Lá estava o ninja que o Cavaleiro das Trevas deveria ser, descendo sobre os criminosos do alto de galpões mal iluminados.
Mas ele era cinza.
Amaldiçoado pela alma nerd dentro de mim, reclamei. Nos filmes, Batman era uma sombra assustadora e emblemática; porém DURA como uma estátua. Nas animações, ágil e furtivo; mas CINZA e AZUL como um velho pijama. Batman Beyond (ou “Batman do Futuro” no Brasil, como costumamos traduzir qualquer obra que se passe... bom, no futuro) parecia resolver a questão – ainda que não se tratasse do “verdadeiro” Batman.
E então Batman Begins aconteceu.
Lá estava o Homem-Morcego em sua plenitude. O uniforme, a furtividade, a tecnologia, o mito. Como Frank Miller fizera em 1986, Christopher Nolan havia redefinido o parâmetro das adaptações do personagem dali em diante, aliando o fantástico ao realismo de forma cativante. As animações mudaram o tom. Os quadrinhos perderam um pouco a cor. A tendência refletiu também na indústria dos videogames e a série Arkham conquistou público e crítica, colocando os jogadores na pele do protetor de Gotham de forma nunca antes vista.
Mas o Batman não era preto.
Antes de prosseguir, acho importante salientar que adoro a série Arkham. Vejo-a como a melhor transcrição de um super-herói para o mundo dos videogames, superando-se nos quesitos mecânicos e artísticos a cada aventura. Minha angústia, entretanto, foca-se no fato de que o manto do morcego vem sendo convertido em uma armadura high-tech na mesma proporção. No recente (e excelente) Arkham Knight, por exemplo, a simbologia original quase desaparece sob o poderio tecnológico que as Empresas Wayne podem comprar, convertendo o fascinante mito original para algo cada vez mais... bélico. Tecnologia e ciência sempre estiveram presentes na estrutura do personagem, mas de forma a auxiliá-lo a se tornar o misterioso demônio temido pelos criminosos; não um homem-tanque capaz de explodi-los com um canhão de 60mm.
Sob essa perspectiva, talvez minha aparência favorita do personagem esteja realmente em Batman Begins; não no uniforme que Wayne e Fox elaboram ao longo do filme, mas na visão que Jonathan Crane (o Espantalho) tem do Homem-Morcego após inalar o próprio gás do medo. Algo que o diálogo entre Wayne e Henri Ducard/Ra's al Ghul expõe de maneira exemplar:
- Vocês são vigilantes – afirmou Bruce, acolhido pelas sombras da cela.
- Não, não, não – respondeu Henri. – Um vigilante é apenas um homem perdido na confusão de sua recompensa pessoal. Ele pode ser destruído ou... preso.
A figura de terno se agachou para encarar o prisioneiro de perto.
- Mas se decidir tornar-se mais do que um homem – prosseguiu. – , dedicar-se a um ideal e eles não forem capazes de impedi-lo... então se tornará algo completamente diferente.
- Como o que?
- Uma lenda, Sr. Wayne.