Isolados do som que embala a pista de dança frenética do Clube Iceberg, Batman (Robert Pattinson) interroga Oswald Cobblepot (Colin Farrell) sobre os crimes mais recentes de um misterioso serial killer. A conversa é subitamente interrompida pela aparição de uma garçonete, Selina Kyle (Zoë Kravitz), que imediatamente toma a atenção do Cavaleiro das Trevas. A troca de olhares entre os dois é rápida, mas intensa; um vislumbre do jogo de sedução que se estenderá pelo restante das quase 3h de duração de Batman.
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No filme de Matt Reeves, o desejo latente entre Mulher-Gato e Homem-Morcego só cresce conforme a relação entre os personagens evolui: quando ele a observa como parte de sua investigação, mas perde o foco ao vê-la trocar de roupa; quando ela parece descansar enquanto envolta pelos braços dele, mesmo que em meio a uma luta. Em mais de um momento ao longo do filme, ambos transmitem ao público uma ideia de atração imediata que só conhece quem já sentiu — em bom português — algum tesão repentino. Conforme se aproximam e melhor se compreendem, os personagens passam a partilhar de algo mais próximo ao amor, mas ainda envolto em uma boa dose de fetiche com couro, máscaras e uma ocasional violência controlada.
A química sensual entre Pattinson e Kravitz, que encontra seu ápice em um belo beijo compartilhado ao contraluz do pôr-do-sol, é um dos principais elementos que fazem com que a nova aventura do Cavaleiro das Trevas se diferencie não só de todas aquelas que a precederam nas últimas duas décadas, como da grande maioria das adaptações de quadrinhos da atualidade. Ao atravessar o romance da Gata e do Morcego por um filtro moldado pelo voyeurismo, usado também para expor a imaturidade do jovem Bruce Wayne, Reeves refina a atmosfera de film noir da produção com uma evolução do tropo da femme fatale. De quebra, potencializa a humanização de seus personagens que, assim como a maioria do público, revelam-se dotados de desejo sexual.
Você pode se perguntar: é essencial que heróis da ficção transem ou queiram transar? É claro que não, até porque a ideia do essencial na arte é debatida em todas as esferas possíveis há uma boa centena de anos. Mas, se a cada mês que passa vemos crescer a oferta das mais variadas produções do gênero, por que o número de representantes que usam esse rico elemento narrativo não acompanha esse movimento? O que impede o espectador que quer mergulhar em um mundo fictício onde os personagens choram, sorriem, sangram e gozam de conseguir isso? O conservadorismo — em especial o econômico — desponta como a mais provável resposta.
Em junho do ano passado, uma cena de sexo oral entre o próprio Homem-Morcego e a Mulher-Gato (ou melhor: dele na Mulher-Gato), na animação da Harley Quinn, foi censurada pela DC. "Heróis não fazem isso", foi a justificativa do selo, que via no ato um convite a pais e mães vetarem o consumo de histórias do Cruzado Encapuzado por seus filhos. Deixando de lado o fato de que aconteceria em uma produção voltada ao público adulto, o que por si só já descreditaria o motivo da decisão, toda a ideia de que sexo seria algum tipo de ameaça ao apelo heroico de personagens de ficção — feitos mais interessantes justamente por quão bem espelham a condição humana — explicita um moralismo comercial tão datado quanto burro. E a impressão de que esse "super-sexo" se torna mais reprovável quando coloca o homem na posição de submissão só escancara como isso passa por um filtro machista.
Se não remediam esse veto rasteiro indo às vias de fato em Batman, ao menos o Morcegão de Pattinson e a Mulher-Gato de Kravitz devolvem a sensualidade aos filmes de herói enquanto ralam uma boa dose de coxa e trocam um punhado e tanto de secadas a canto de olho. Se o trabalho de Christopher Nolan em Batman - O Cavaleiro das Trevas (2008) ajudou a moldar uma nova era das adaptações de quadrinhos pelos anos seguintes — infelizmente incluindo aí esse trato asséptico das relações amorosas humanas —, tomara que o de Reeves no novo longa do personagem sirva no mínimo para lembrar os colegas da DC Filmes e os cabeças do Universo Cinematográfico da Marvel (MCU) que uma dose controlada de sensualidade não vai ferir quem sai na mão com o Coringa ou o Thanos.
EXCEÇÕES, PERO NO MUCHO
Existem casos que remam contra essa maré de castidade, é claro. Em Pacificador, James Gunn colocou o personagem título (vivido por John Cena) em cenas de sexo um tanto quanto explícitas. Já em O Esquadrão Suicida (2021), com mais sutileza, o cineasta inseriu na trama uma maratona destrutiva de sexo protagonizada pela Arlequina (Margot Robbie). Em ambas as produções, entretanto, o sexo foi tratado como engrenagem em um maquinário do absurdo, compondo o rol de surpresas e alívios cômicos de duas produções para maiores de idade. Momentos ousados? Talvez. Sensuais? Definitivamente, não.
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É por isso que, exageros à parte, dá para entender quando um cineasta como Steven Soderbergh reclama da ausência de tesão em filmes de super-herói. Não basta o abotoar de um cinto de Yondu, no interior de um bordel intergaláctico de Guardiões da Galáxia Vol. 2 (2017), para que enxerguemos todo um universo cinematográfico flagrantemente casto como capaz de produzir alguma faísca de desejo entre seus integrantes. Ou pior: não basta uma cena burocrática de Eternos (2021), com Gemma Chan e Richard Madden de ombros nus e mesma tensão sexual que têm um dedo mindinho e a quina de uma mesa de canto.
Essa abstinência sexual compulsória dos grandes heróis da DC e da Marvel fora da nona arte não é surpresa ou novidade. Em fevereiro de 2021, o artigo Everyone is Beautiful and No One is Horny, da jornalista americana RS Benedict, começou uma longa jornada de viralização ao expor essa realidade por meio da contraposição entre o passado e presente das adaptações de quadrinhos. Para ela, quando produções do tipo eram mais uma aventura comercial ocasional, os estúdios estavam mais dispostos a imbuí-los com elementos adultos para além da violência.
Segundo Benedict, hoje, quando filmes de super-heróis se tornaram pilares de projetos bilionários alicerçados numa crescente universalidade de apelo comercial, correr tal risco pode não ser lucrativo o bastante. Não é à toa que a maior referência de subtextos libidinosos nos “filmes de hominho” siga sendo até hoje a Mulher-Gato de Michelle Pfeiffer em Batman - O Retorno (1992).
“As estrelas de hoje são figuras de ação, não heróis de ação. Aqueles corpos perfeitos existem apenas para o propósito de infligir violência a outros. Se divertir é se tornar fraco, desapontar sua equipe e dar uma chance de vitória ao inimigo”, resume Benedict. Ao se propor a retratar a jornada de Bruce Wayne de um vigilante para um verdadeiro herói, Batman acerta ao preservar a sensualidade como um dos componentes-chave do processo — e prova que não precisa de uma classificação indicativa maior do que 14 anos para isso.
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