“Editores são burros”. Foi o mantra que Neal Adams repetiu várias vezes durante sua apresentação à plateia do Auditório Ultra na sexta-feira (6), segundo dia da CCXP19. Ele disse que é uma constante na sua carreira ter que ensinar aos editores de quadrinhos o que eles deviam fazer.
Por exemplo: o direito dos autores aos royalties, ou participação por vendagem, batalha que Adams encampou nos anos 1970. “Levou um tempo pra botar a noção na cabeça dos editores”, disse o artista, atuante nas HQs desde 1960. “Eu tive que explicar: ‘Olha, se o roteirista e o artista tiverem direitos a royalties, eles vão trabalhar com mais prazer, e aí o trabalho vai ficar melhor, e aí você, dono da editora, vai vender mais e vai ganhar mais.’”
Adams disse que outros autores não defendiam seus direitos porque tinham medo de perder o emprego. “Eu sei que é muito ego dizer que eu não tenho medo. Mas você não pode ter medo com editores. Ainda mais hoje, que você pode dizer: ‘Se não me pagarem direito, eu abro a minha editora.’”
O autor emendou várias histórias no painel com verve e cadência de comediante de palco. Algumas:
“Me convidaram várias vezes pra vir ao Brasil. Mas na época eu trabalhava muito com publicidade, porque publicidade paga quatro, cinco vezes mais do que pagam em HQ pela mesma quantidade de trabalho. Parei com a publicidade, voltei pros quadrinhos e, por conta disso, tive que voltar às convenções – e tirar o dinheiro de vocês. Então, passem lá na minha mesa, comprem uns prints e compensem o déficit na minha renda.”
“Eu não 'ajudei' os autores a terem direitos. Eu que fiz os autores ganharem direitos. Nas editoras, eu via gente jogando original no lixo. Uma vez falei pra um cara que, se ele fizesse isso de novo na minha frente, ia levar um soco na fuça. Demorou anos, mas começaram a devolver os originais. ‘Se vai colocar no lixo, então devolva pro artista’, eu dizia. E eles perguntavam: ‘Por quê?’. ‘Porque você é burro.’ Burro que nem o Donald Trump, aliás.”
“Nos anos 1970, eu estava lá na minha mesa, trabalhando, tranquilo, e o [editor] Julius Schwartz veio me mostrar um fanzine mimeografado. Quem escrevia? Os fãs. Quantas cópias tinha? Doze! Aqueles malucos viraram vocês. Hoje tem 100 convenções nos EUA por ano que passam de 20 mil em público. Tem outras 200 com público entre 2 e 10 mil pessoas. Nós estamos tomando conta do mundo. E sem matar ninguém.”
Adams também foi um dos primeiros artistas a trabalhar simultaneamente para Marvel e DC sem usar pseudônimo – nos anos 1960, havia a regra tácita de que quem colaborava com uma editora não podia colaborar com a outra.
“Eu trabalhava pra DC e conversei com o Jim Steranko. Ele me falou do Marvel Method [o método de roteiro de Stan Lee, com mais liberdade para o desenhista contar a história] e eu me interessei em fazer alguma coisa daquele jeito. Fui na Marvel, estava na sala do Stan. Ele se entusiasmou, começou a pular em cima da mesa, aquelas palhaçadas que ele fazia. Ele me disse para eu pegar a série que eu quisesse. Perguntei: ‘Qual é a que menos vende?’ X-Men. ‘Então quero fazer X-Men.’
"O Stan me propôs um acordo: ‘Você faz X-Men, aí cancelamos e você passa pra uma série importante, tipo Vingadores.’ (Na época isso era piada, pois Vingadores era um saco.) E o Stan perguntou: ‘Como você quer aparecer nos créditos?’ Falei que queria com meu nome. Ele respondeu: ‘Pode ser que o pessoal da DC não goste’. Eles que vão se catar. Stan insistiu, ‘Quem sabe Lutherios Neal?’, eu disse: ‘Stan, que nome mais imbecil'. Ele insistiu, disse que talvez a Marvel não fosse gostar… Quando eu falei ‘Então tchau, Stan’, ele me pediu pra esperar. E aquele foi o último dia em que alguém teve que usar pseudônimo pra trabalhar em outra editora".
Sobre Batman:
“Era fins de anos 60 e o seriado de TV tinha acabado. O Batman era um cara que andava de cueca na rua em plena luz do dia. Isso não é o Batman. O Batman tem que ficar à espreita, nas sombras. O Batman não entra pela porta. O Batman aparece, que pula de dentro do armário. (Não naquele sentido de sair do armário.) O Julius Schwartz me disse: ‘Por que eu só recebo carta da garotada dizendo que o Batman de verdade é o que aparece na Brave and the Bold [revista que Adams desenhava, onde Batman contracenava com outros heróis DC] e não o que aparece nas revistas do Batman?’. Eu disse: ‘Julius, todo mundo sabe como o Batman tem que ser. Só vocês da DC que não.’”
Adams ainda defendeu que o Lanterna Verde John Stewart, que ele criou com Denny O’Neil, foi o primeiro herói negro de respeito nos quadrinhos dos EUA. “Os outros, tipo Luke Cage, eram caras de gangue, que falavam errado. Eu cheguei pro editor e falei que queria um cara negro, sério, com diploma universitário, que ia ser Lanterna Verde”. O quadrinista ainda comentou a controvérsia de quando o filme do Lanterna trouxe o personagem Hal Jordan, branco, e não Stewart, conhecido de milhões de fãs a mais por conta do desenho animado da Liga da Justiça. “Podem apostar que, quando sair outro filme do Lanterna Verde, vai ser com o John Stewart.”
Ainda no tema dos heróis negros, o autor lembrou de Superman vs. Muhammad Ali, que ele considera sua HQ mais importante. E contou a última história:
“Uns anos atrás, numa convenção, apareceu um cara na minha mesa dizendo que tinha sido treinador do Muhammad Ali. Quando o Ali estava velho, doente. O cara na verdade era fisioterapeuta do Ali. Ele levou uma edição em capa dura de Superman vs. pro Ali autografar e o Ali perguntou se ele conseguia mais dez. O cara comprou e levou pro Ali. E os dois passaram a semana desmontando as edições, recortando as páginas e colando pela parede da casa. Que tal, hein?”.