Este ano, o Artists’ Alley da CCXP acontece em versão virtual e chama-se Artists’ Valley.
Você tem que fazer um esforcinho para chegar naquele ponto no meio do mapa. E pra não se perder entre 500 e tantos quadrinistas, ilustradores e olhões kawaii que querem te convencer a parar e olhar e comprar. E fuçar as mesas atrás de um gibi que te convença pela capa. E, quem sabe, descobrir a nova promessa do quadrinho brasileiro.
Ou seja: igual a todos os Artists’ Alley de toda CCXP. A diferença é que este ano ele se chama Valley.
Eu e meu mouse passamos em cada uma das 589 mesas, olhamos cada capa, paramos pra namorar uns pins, ficamos impressionados de novo com a biodiversidade amazônica que é o quadrinho brasileiro, e saímos de lá com umas sugestões.
Só pelo que a gente viu das capas. E também por alguns papos.
MONSTRO DE GRAÇA
O Monstro Debaixo da Minha Cama é a primeira HQ de Luckas Iohanattan, 26 anos, de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Depois de ler, pedi para ele confirmar: é mesmo a primeira?
Ele jura que sim. Eu ainda estou desconfiado.
O Monstro começa com um aviso: “Esta é uma história fictícia, a realidade é bem pior.” É uma história sobre abuso infantil, sobre pais e colégios despreparados e sobre buscar apoio nos seus brinquedos e na fantasia. É toda contada em preto e branco com uns tons de rosa e de vermelho. E com um nível de ilustração e narrativa que não parece de primeiro quadrinho.
Você pode ler de graça. Luckas disse que até teve propostas de lançar por editora, mas elas não foram para a frente. Então, resolveu soltar na plataforma Gumroad no Dia Nacional do Combate ao Abuso e à Exploração Infantil (18/5). Eu ainda não tinha visto. Coisas que se descobre na CCXP.
Na Gumroad, "o leitor pode escolher quanto quiser pagar para ler”, Luckas me explica via Instagram, “mas sem obrigação. Quem quiser pode baixar de forma gratuita também.”
A mesa de Luckas Iohanattan no Artists’ Valley – onde você também acha a segunda HQ dele, 30 Segundos, que não tem cara de segunda HQ e também está de graça – é a número 282.
ÁRVORE EM FLOR
“A história de uma personagem que leva os seus dias imersa em uma rotina comum a quase todos: de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Embora existam pequenas satisfações em sua vida, tudo muda com a florada da sibipiruna: a vida pode se fazer mais interessante.”
Sibipiruna me chamou pela capa simples: um galho, uns desenhos de sementes e esse título curioso sobre papel kraft. Eu não sabia o que é uma sibipiruna.
O projeto gráfico e os desenhos a lápis são de Annima de Mattos (no ano passado ela lançou Você precisa dar um jeito na sua vida), com roteiro de Lucas Oda (Monstruário). Ela mora em São Paulo, ele em Campinas.
“A HQ quer discutir esses pequenos prazeres secretos e ocultos da vida, escondidos no dia a dia massacrante, com uma linguagem sensível e poética, o que combina bem com os traços da Annima”, diz Lucas.
Sibipiruna tem 44 páginas e custa R$ 30. Annima e Lucas estão lado a lado virtualmente, respectivamente nas mesas 429 e 430. Os dois participam de lives no sábado, e Lucas também no domingo.
TRADUTORA
Aline Zouvi já está lançando seu décimo quadrinho. Em breve ela também lança a carreira de tradutora de quadrinhos – traduziu A Bruxa Margaret, de Jim Broadbent e Dix, que sai na semana que vem pela Darkside. E seu décimo quadrinho é sobre tradução.
Tradução Simultânea, no caso, é mais uma das histórias mudas de Aline, que conta, sem texto, a história de uma palestrante e sua intérprete tentando se conhecer e superar as barreiras da linguagem.
Mas ela diz que não liga tão fácil esse início de carreira de tradutora e uma HQ sobre tradução.
“Procuro tomar cuidado em relação a como me expresso sobre isso, sabe? Por exemplo, acho que essa experiência de tradução pode colaborar no processo criativo de quadrinhos, mas não sou a favor de uma noção da HQ como tradução em si, como já foi defendido. Eu respeito essa visão, mas não concordo haha”, ela diz.
Tradução Simultânea tem 24 páginas e custa R$ 8. A edição é da Sapata Press. Aline Zouvi está na mesa 380 e fará uma live no sábado, às 20h.
MANGÁ BRASILEIRO
Para quem é leitor de Inio Asano (Solanin, Boa Noite Punpun), Daisuke Igarashi (Children of the Sea), Shuzo Oshimi (Happiness) e que curte dramas do cotidiano, japoneses ou não. É para esses que Lucas Marques recomenda Ritos de Passagem, mangá brasileiro que lança oficialmente na CCXP.
Leitores japoneses já gostaram. No ano passado, a HQ teve uma premiação no Japan International Manga Awards. Este ano, ele e a noiva Priscilla Miranda ganharam prêmio por outro mangá no Silent Manga Audition. “Se a pandemia permitir, vamos para o Japão no ano que vem”, ele conta.
Na trama da HQ, os colegas Ítalo e Érika prometem que serão irmãos a partir do primeiro dia de aula. Apesar de convencerem os colegas, a relação entre os dois não vai durar tão fácil.
Ritos de Passagem: quando éramos irmãos tem 146 páginas e está saindo pela Avec. Custa R$ 27,50, com frete grátis. A mesa de Lucas é a 256, e ele vai fazer lives nos três dias de evento.
BENDITO FINAL
Os dois primeiros volumes de Bendita Cura já renderam dois Troféus HQ Mix e uma indicação ao Prêmio Jabuti. O terceiro volume é a conclusão da história criada por Mário César sobre homofobia e, sempre com aspas, “cura gay”.
É o fim da trajetória de Acácio do Nascimento, que desde criança passou por vários tratamentos para uma cura ilusória da homossexualidade. Agora ele chegou à vida adulta.
"Foi uma jornada e tanto produzir uma HQ como essa e ainda organizar a POC CON ao longo dos últimos anos presenciando a ascensão à presidência do Brasil de um miliciano saudosista da ditadura e abertamente homofóbico", diz Mário. "Mas eu jamais imaginei que fosse ter uma recepção tão calorosa do público e dos prêmios. Esse retorno tem aquecido meu coração e me dado forças pra produzir mais e mais."
Bendita Cura volume 3 tem 96 páginas coloridas e custa R$ 30. A previsão de envio é para o mês que vem. Mário está na mesa 534 e tem lives na sexta-feira, no sábado e no domingo.
LUZIA-HOMEM
Estima-se que a Grande Seca de 1877 a 1879 matou meio milhão de pessoas no nordeste brasileiro. Duzentas mil migraram para outras partes do país. Luzia-Homem, romance do cearense Domingos Olímpio publicado em 1903, retrata essa época dos retirantes a partir de duas mulheres.
É o livro que ganha uma adaptação de dois autores cearense, Zé Wellington e Débora Santos, chamada Luzia. Sai no início do ano que vem, e a pré-estreia começou oficialmente hoje na CCXP.
A ideia de adaptar o livro veio “primeiro da minha relação com a cidade onde se passa a história, Sobral, que foi onde nasci”, diz Zé Wellington. “Segundo, porque ninguém nunca fez."
“Me animei pra desenhar esse quadrinho porque era uma oportunidade de fazer a nossa leitura da história”, diz Débora Santos. “Como é uma história que fala da amizade entre duas mulheres, isso me interessou muito. Depois que li, fiquei apegada à Luzia e à Teresinha. Quero cuidar delas, sabe?”
Luzia tem 96 páginas em preto e branco e está em pré-venda por R$ 29,90, com previsão de envios a partir de fevereiro. Débora está na mesa 186 e Zé Wellington na 371. Eles marcaram lives para todos os dias do evento.
BOLDINHO
“Boldinho é uma paródia”, diz o quadrinista Daniel Paiva no vídeo que publicou hoje nas suas redes sociais. Boldinho é uma criação sua: um garoto com cinco folhas de canábis no lugar do cabelo, que usa camiseta verde, fuma maconha e às vezes troca o R pelo L. Já se viu ele falando em “lalica” e “lastafalai".
Boldinho é uma paródia, disse Paiva, que recebeu uma notificação extrajudicial que alega que Boldinho, mesmo sendo paródia, “traz descrédito à obra original”. Você sabe de quem veio a notificação.
“Não considero descrédito nenhum ser chamado ou caracterizado como maconheiro”, o quadrinista diz em vídeo. “O Boldinho é toscamente desenhado pra ninguém confundir boldo com cebola. As imagens foram publicadas em meios restritos a maiores de idade.”
Paiva, porém, diz que não tem grana para discutir isso nos tribunais, então apagou todas as tiras ou imagens com Boldinho que publicou na internet. Elas resistem, por enquanto, no cache do Google Imagens ou em quem no Twitter estiver indignado com a notificação extrajudicial.
Todo caso de pressão jurídica traz um resultado maior do que qualquer outro. Você já conhecia o Boldinho? Pois é.
Daniel Paiva está na mesa 456 do Artists’ Valley. Você não vai achar nada de Boldinho, mas pode conhecer seus personagens Beto e Dé.
(o)
Sobre o autor
Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato.
Sobre a coluna
Toda sexta-feira, virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.
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