Filmes

Artigo

A Trilogia dos Mortos de George A. Romero

A importância dos filmes para o cinema

26.07.2005, às 00H00.
Atualizada em 16.07.2017, ÀS 19H02

Quem gosta de cinema acredita em certas lendas. Seja a nova aventura de Indiana Jones ou o Napoleão que o Kubrick roteirizou, mas não filmou, há uma série de projetos que os fãs torcem para ver nas telas. No caso de Terra dos mortos (Land of the dead, 2005), a quarta parte da série de George A. Romero sobre zumbis, a espera foi de apenas vinte anos.

Ironicamente, Romero só conseguiu dinheiro para realizar o projeto graças ao êxito relativo de cópias baratas do seu trabalho, como Extermínio (2002) e Resident Evil (2002). Vale lembrar que todos os filmes de zumbis feitos depois de 1968, sejam eles bons ou ruins, são cópias de Romero. A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the living dead), mito fundador do gênero, enterrou de vez o terror clássico no estilo Boris Karloff e abriu caminho para uma nova estética cinematográfica. O longa marca o fim de uma era cientistas excêntricos, gargalhadas malévolas e castelos mal-assombrados. Até mesmo o cemitério, onde começa a história, é filmado num preto-e-branco granulado, sem firula nem gelo seco.

Noite dos mortos-vivos

Noite... abre com Barbara (Judith ODea) e seu irmão indo deixar flores no túmulo do pai. Perto da lápide, o sujeito se lembra de uma bronca que tomou do avô naquele mesmo cemitério, graças a uma brincadeira de mau-gosto. Ele repete a brincadeira e os dois discutem. No fundo, o primeiro zumbi se aproxima. Depois de uma breve perseguição, Barbara termina sozinha em uma casa cheia de cadáveres, todos prestes a acordar. Daí em diante, a fita não dá um minuto de sossego ao espectador, e o suspense vai se acumulando até transbordar no anticlímax apocalíptico que antecede os créditos finais. Romero não se rende a esquemas morais fáceis, conferindo à história uma camada de ambigüidade, camada essa que sustenta Noite... como um bom filme até os dias de hoje.

A grande sacada do diretor é misturar ao suspense e ao horror uma forte dose de crítica social. Lançado em 1968, ano do assassinato de Martin Luther King e das grandes (e violentas) manifestações de Washington, o filme tem no papel principal um negro. Para reforçar a idéia, Ben (Duane Jones) é o único personagem do filme que toma decisões sensatas, que não entra em estado catatônico e que não parte para cima dos outros sobreviventes por ganância ou medo. Trancados em uma casa e cercados por zumbis, o grupo de desconhecidos tem ainda de lidar com a animosidade e com as brigas constantes. Romero nega ser proposital, mas os brancos retratados em Noite... são ignorantes, neuróticos, preconceituosos e (por que não dizer?) burros. Por outro lado, o diretor transforma as milícias anti-zumbis em facções disfarçadas da Ku Klux Klan - sem as máscaras e com respaldo popular.

Com o tempo, Noite... foi perdendo a pecha de descolado e caiu, salvo em certos círculos, na categoria de trash. Alguns diálogos viraram chavões sofríveis e, mesmo toda a influência que exerceu no cinema de terror acabou resumida ao aspecto repugnante da fita. Apocalipse Canibal, Uma virgem entre os mortos-vivos e o clássico italiano Noites eróticas dos mortos-vivos são todos filmes que se aproveitam da nojeira na trilogia de Romero, deixando para trás o que há de mais interessante nela. Perto de suas seqüências e filhos bastardos, no entanto, Noite... é uma fita leve, que compensa a falta de recursos financeiros com um roteiro impecável e uma fotografia crua e realista. No mesmo ano em que Roman Polanski cutucava outro gênero do terror com O bebê de Rosemary, Romero inaugurou o ramo que ele só revisitaria uma década mais tarde.

Intervalo

Entre Noite dos mortos vivos e Despertar dos mortos, Romero dirigiu dois filmes, os esquisitos O exército do extermínio (The crazies, 1973) e Martin (1977). No primeiro, um vírus misterioso enlouquece os moradores de uma cidade no interior. Sob lei-marcial e cercados pelo exército, os poucos habitantes que não foram acometidos pela doença se organizam para furar o bloqueio dos militares. Em Martin, um sujeito que acredita ser vampiro muda-se para uma cidade pacata, onde pretende acabar de uma vez por todas com o hábito esquisito de beber sangue. Embora um tanto calcados nas idéias de Noite..., ambos os filmes são razoáveis, mas costumam ser lembrados pelos fãs como mero ensaio do que estava por vir.

Despertar dos mortos

Romero foi também um dos primeiros a sacar o potencial cômico dos filmes de zumbis. Ainda que infinitamente mais violenta e repulsiva do que Noite dos mortos vivos, a seqüência Despertar dos mortos (Dawn of the dead, 1978) é também uma sátira social sobre a humanidade à beira do apocalipse. A fita se passa alguns meses depois do episódio original, só que agora em uma cidade grande e infestada de zumbis. Enquanto os funcionários de uma rede de televisão discutem se vão ou não ficar no ar, um grupo da SWAT promove uma verdadeira matança num prédio de apartamentos. No meio da confusão, dois funcionários da TV e dois policiais da SWAT fogem em um helicóptero e pousam num shopping center abandonado. Depois de promover uma limpeza nos zumbis residentes, a turma se instala e os dias passam.

Tudo que o grupo precisa, de armas à comida, pode ser encontrado no shopping. Conforme essas necessidades básicas vão sendo substituídas por orgias gastronômicas e roupas de grife, uma horda de zumbis passa a rodear o estabelecimento. A idéia é clara: se o morto-vivo lembra de algum lugar da sua vida anterior, esse lugar é um shopping center. Como no recente Todo mundo quase morto (Shaun of the dead, 2004), somos nós os zumbis canibais e acéfalos que vagam pelas cidades - daí o bom-humor do filme. Também há espaço para bastante suspense nas mais de duas horas de Despertar dos mortos. As cenas grotescas criadas por Tom Savini, o "mago dos efeitos especiais", ficam no meio termo entre o perturbador e o cômico, o realista e o totalmente fantástico. O enorme culto à fita vem, imagino eu, desse tom de absurdo que emerge da bem bolada fusão entre terror e comédia.

Despertar dos mortos tem uma legião de fãs e, para cada um deles, parece haver também uma versão diferente do filme. Existe a clássica, que foi aos cinemas em 1978, e a clássica em versão do diretor. Para o lançamento europeu, o italiano Dario Argento cortou as cenas engraçadas e injetou mais sangue e ação. Há ainda uma versão sem cortes, longa e com problemas de andamento. Mais? Uma segunda versão do diretor (a preferida de Romero), uma versão inglesa sem cortes, uma versão sem censura da versão sem cortes, duas versões alemãs, uma japonesa... e a lista prossegue. A que saiu em bancas no Brasil é uma das longas e sem censura, mas não sei bem qual. Como todas as outras, ela acompanha o inevitável aviso que diz: "Pela primeira vez disponível em DVD...". Está bom demais.

Intervalo II

Depois de Despertar, Romero dirigiu dois fracassos retumbantes. Cavaleiros de aço (Knightriders, 1981), uma adaptação da fábula do Rei Artur com motoqueiros, é um filme longo, enfadonho e cheio de paradoxos religiosos mal realizados. Creepshow - Show de horrores (1982), parceria com o escritor Stephen King, tem lá seus momentos de originalidade, mas parece ter sido feito por outro cineasta. O único mérito fica com Leslie Nielsen, que figura em uma das cinco histórias da fita, todas tiradas de antigos gibis de terror.

Dessa vez, o retorno ao mundo dos zumbis foi mais rápido.

Dia dos mortos

Embora mantenha alguns dos elementos de seus antecessores, Dia dos mortos (Day of the dead, 1985) está um pouco abaixo deles. A história se passa alguns meses depois de Despertar dos mortos, num mundo devastado onde para cada ser humano normal há 400 mil mortos-vivos. O cenário da vez é um complexo militar na Flórida, onde cientistas e soldados tentam entender as causas do fenômeno. Apesar de contar com a melhor produção de toda a série e um roteiro bastante razoável, falta algo da novidade dos dois primeiros filmes. A graça toda fica com o zumbi "evoluído" Bub (Sherman Howard), que tem até um lado sensível. Dia dos mortos não chegar a ser ruim, mas segue a velha maldição da trilogia com final capenga.

As versões medonhas

Trinta anos depois do lançamento original, resolveu-se que era hora de transformar Noite dos mortos vivos em um outro filme. Claro! Para que deixar o clássico lá tranqüilo se você pode cortar as melhores cenas, inserir novos atores e tramas e ainda mudar completamente a trilha sonora? A tal edição comemorativa consegue ser ainda pior do que a refilmagem de Noite... dirigida por Tom Savini na década de 90.

Essa necessidade patológica de recriar versões ruins de filmes bons rendeu também um novo Madrugada dos mortos, cheio de trucagens e cortes de videoclipe. Por sorte percebeu-se que, melhor do que refilmar as obras de Romero, era deixá-lo fazer mais um filme de zumbis. Com orçamento decente e uma premissa ótima, tudo indica que o diretor acertou a mão com Terra dos mortos. O companheiro de cozinha que resenhou o filme disse que o mundo precisa de mais Romeros. A isto eu adiciono: deixem eles filmarem!

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