França e Estados Unidos não são os melhores amigos do mundo, mas no cinema, especialmente desde a Nouvelle Vague, com seus vanguardistas que admiravam o classicismo hollywoodiano, os dois países vivem numa troca constante. Dos EUA, os franceses importam um senso de performance. Na França, os produtos de massa americanos recebem aval intelectualizado.
Turnê, o terceiro longa-metragem dirigido pelo ator Mathieu Amalric, transforma essa simbiose em premissa. Na trama, Joachim (Amalric), ex-produtor de televisão francês, hoje vive de agenciar espetáculos de neoburlesco. Na turnê do título, ele viaja pela França com um elenco de dançarinas dos EUA, desesperado por não ter achado ainda um lugar para elas se apresentarem em Paris, o final da tour.
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O burlesco em si resume bem a forma como a arte se recicla e se reinventa sempre que atravessa o Atlântico: surgiu como versão erótica das performances farsescas da Commedia dell'arte, ganhou os cabarés de Paris na Belle Époque, e nos anos 2000 foi apropriado por aspirantes a pin-up e pelo circuito de striptease nos centros urbanos dos EUA. Essa versão neoburlesca que retorna à Europa - a versão do filme - já é uma mistura tipicamente americana de white trash com ambições deslumbradas de estrelato.
São personagens deslocados no tempo, então, os de Turnê. As dançarinas repetem velhas rotinas no palco que irritam Joachim, mas o produtor também nutre seus anacronismos; ainda acha que tem cacife no showbiz de Paris, apesar das cagadas do passado, e não vê que os anos consumiram a chance de intimidade que ele teria com seus filhos. O paletó bordô, a camisa aberta e o bigodinho fino são o figurino que Joachim guarda dos bons tempos. Assim como as dançarinas, ele também se fantasia.
Amalric, dessa forma, aproxima mais de si aquele senso americano de performance que os franceses tanto invejam. Nunca esteve tão parecido com Jean-Paul Belmondo, que em Acossado fez o maior personagem hollywoodiano do cinema francês, o criminoso Poiccard. As trocas entre as duas culturas formam o pano de fundo de Turnê - francês comendo no KFC, "Louie Louie" tocando com sotaque francófono - e talvez seja por essa familiaridade que o filme, que deu a Amalric o prêmio de melhor diretor em Cannes, tem sido abraçado mundo afora.
Amalric sabe jogar para a torcida. Não é difícil enxergar nas escolhas do ator-diretor a mistura de duas influências de lá e de cá, o nova-iorquino John Cassavetes e o francês Arnaud Desplechin. De Cassavetes - que afinal é influência para todo mundo - ele preserva o ar de improviso e o vulto de tragédia que persegue personagens imaturos como Joachim. De Desplechin, o diretor de Reis e Rainha a quem Amalric deve parte do seu sucesso como ator, ele mantém a sensação de que tudo ao redor está para ruir e a teatralidade dos dramas mais íntimos. As cenas entre Joachim e Mimi Le Meaux (Miranda Conclasure), como o momento do batom no olho e o ótimo diálogo no corredor do hotel, são Desplechin puro.
Essa maneira de transformar em performance mesmo os pequenos dramas, como o do pai ausente, é discutível. É tênue a divisa entre a autenticidade de Joachim, enquanto personagem com ilusões de grandeza, e o dilema de Amalric de se aceitar como showman (a aproximação do ator com Hollywood tem sido obviamente um processo de auto-aceitação). No fundo ele deveria fazer como qualquer astro normal e montar uma banda para desopilar.
Há um debate que se pode formular a partir desse cruzamento do intimismo com o espetáculo. Gritar suas dores num megafone, como Joachim/Amalric faz no final do filme, torna essa dor mais verdadeira ou só a faz ser ouvida por mais gente?
Ano: 2010
País: França
Classificação: 14 anos
Duração: 111 min
Elenco: Per Gessle, Helena Josefsson