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Existem associações que não devem ser feitas. Amor para Sempre (Enduring Love, Inglaterra, 2004), baseado no best-seller britânico homônimo, de Ian Mc Ewan, é dirigido pelo sul-africano Roger Michell, que, conforme o cartaz do filme indica, é o mesmo de Um Lugar Chamado Notting Hill. Não espere, com isso, encontrar a leveza de uma história utópica que muitos gostariam de viver na pele, um conto de fadas desenvolvido pela narrativa convencional e protagonizado por astros de cachês altos. Amor para Sempre é um filme mais low-profile e, justamente por causa disso, se permite certas liberdades para as quais a grande indústria torce o nariz.
Entre essa produção pequena e o blockbuster citado há semelhanças que se resvalam, mas o que compõe este último trabalho é a fuga dos elementos anteriores. Há em ambos a convivência de mundos distintos: um marcado pela fama (no caso de Amor para Sempre, apenas um certo reconhecimento profissional e notoriedade entre os alunos) e outro pelo anonimato. Os dois filmes lidam com a química que se produz no relacionamento assediado entre dois universos que, em tese, pelas leis da natureza, nem deveriam se tocar. Existe um interesse do diretor em tecer as conseqüências e os efeitos daquilo que o acaso produz. Na comédia romântica, essa interação é tão improvável quanto positiva. Neste último caso, a coisa vai prum caminho mais tortuoso e neurótico.
Entre um filme e outro, Michell também dirigiu Fora de controle (2002), um thriller psicológico em que Ben Affleck é um advogado bem-sucedido que se desentende no trânsito com Samuel L. Jackson e, a partir daí, por causa de uns documentos que se perdem, Jackson passa a chantagear o mauricinho. Aí sim o conflito é mais claro, bem como a relação obsessiva firmada entre os pólos economicamente opostos. Parece que, com estes três exemplos, o diretor dá a impressão de querer filmar a busca pela compreensão e pela aceitação entre células que apenas se esbarram na sociedade. Passando por caminhos contundentes em maior ou menor escala, em que a trama adocicada entra como opcional, Michell explora com cuidado a riqueza que pode surgir entre pessoas que, na prática, apenas estão numa mesma fila de banco. Às vezes ele mantém esse tom fantasioso de conto infantil e revista de celebridades. Às vezes dá a impressão de ser um marxista justiceiro da sorte. Em Amor para sempre, carrega um pouco mais da segunda alternativa, com um toque a mais de outro poder econômico: a religião.
Em um pacato dia de primavera, Joe Rose (Daniel Craig) convida sua namorada Claire (Samantha Morton) para um piquenique. O vinho mais caro seria o adereço para a pretendida entrar no clima de um momento especial, quando Joe entregaria a ela a aliança de noivado. Mas o que poderia ser um agradável almoço ao ar livre transforma-se num pesadelo na vida de Joe. Testemunhas de um acidente de balonismo, Joe Rose e Jed Parry (Rhys Ifans, o coadjuvante excêntrico de Notting Hill que rouba a cena nos dois filmes) acabam se conhecendo durante a tragédia, o que provoca o início de um relacionamento mórbido de fanatismo e cumplicidade que afetaria o destino de ambos.
Desprovido das imposições dos grandes estúdios cinematográficos, Michell opta pelo caminho da experimentação. A cena inicial, que sugere um clima mais contemplativo e uma direção mais fixa e deserotizada, é feita com cortes rápidos, ângulos inusitados, mais parecendo câmera na mão de filmes feitos em digital. Em princípio esse ambiente bucólico não exigiria pressa, pelo contrário, a não ser que o diretor propusesse uma ruptura de padrões ou, pelo tom investigativo dos planos, estivesse alardeando o espectador pra algo que fosse acontecer. Amor para sempre segue uma construção lógica de seqüências, mas entre elas há um quê de nonsense em muitos planos fixos. O casal namorando e, ao fundo, um baita balão caindo é a simbiose entre o romântico e o ridículo. Joe e Jed rezando a alma do morto espatifado em carne viva junto com uma vaca é uma das cenas mais insólitas do cinema britânico. O encontro de amigos, que num outro contexto seria registrado como a válvula de escape do filme, aqui é pra lá de enigmático. Joe e Claire procuram "uma luz de sabedoria" no grupo pra tentar entender melhor o que de fato aconteceu naquele piquenique. E a câmera filma essa reunião em planos escuros, fechados, sombrios. Os poucos diálogos dão a impressão de que amizade sincera é uma das últimas coisas que há entre eles. Em Amor pra sempre não há a opção pelo caminho mais fácil. Tudo está em fase de testes, em constante ebulição e alternância de voltagens. Suas ousadias filmadas trazem mais dubiedades do que afirmações. Michell usa a multiplicidade de escolha de ritmos, luzes e enquadramentos a seu favor. Não para mostrar erudição na captação de imagens, nem pra estampar um estilo cheio de modismos e pitis, mas talvez pra mostrar um paralelismo por meio de pictogramas entre os vários caminhos que o acaso propõe e a quase infinidade de modos de documentar essas incertezas.
Érico Fuks é editor do site cinequanon.art.br
Ano: 2004
País: Inglaterra
Classificação: 16 anos
Duração: 100 min
Elenco: Daniel Craig, Rhys Ifans, Samantha Morton, Bill Weston, Bill Nighy, Susan Lynch, Ben Whishaw, Andrew Lincoln, Helen McCrory