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Artigo

Cidadão Kane

O mega Édipo de Orson Welles

30.10.2003, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H15

Há pouco mais de 60 anos, Orson Welles lançou o que para muitos seria o maior e melhor filme de todos os tempos. Visto hoje, Cidadão Kane certamente não tem o mesmo impacto da época de sua primeira exibição, mas ainda é uma obra chocante.

A história é conhecida: uma biografia disfarçada do poderoso William Randolph Hearst. O protagonista, Charles Foster Kane (vivido pelo próprio Welles) seria uma espécie de Roberto Marinho da época, magnata da imprensa americana. O diretor teve muito trabalho com Hearst e seus amigos, que queriam destruir o filme, mas conseguiu concluir e exibir sua obra-prima.

Cidadão Kane mereceu uma grande quantidade de estudos. Há quem diga que não passa de uma versão de Nasce uma estrela, grande sucesso de anos anteriores. Uma história sobre a ascensão e queda de uma grande e famosa personalidade. Kane realmente é uma personagem que é destruída ao longo do filme, mas a finalidade não é o castigo daquele que quer todo o poder. Cidadão Kane tem como finalidade mostrar que nada é melhor do que o colo da mamãe.

Assim como em seus contemporâneos O mágico de Oz e ...E o vento levou, os protagonistas percebem que o melhor mesmo é a terra natal, a família bem próxima, os cuidados maternos. Estas obras são realizadas em plena eclosão da Segunda Guerra Mundial. Filmes não são concebidos de forma ingênua. Mesmo que Welles tivesse toda a liberdade do mundo para criar era princípio básico da indústria cinematográfica a propagação do patriotismo, a certeza de que é necessário defender a pátria em eventual guerra.

Orson Welles teve carta branca para fazer o quisesse com seu Kane e muito, mas muito dinheiro para a época. Welles vinha de seu maior sucesso como comunicador. Realizara um pouco antes, em 30 de outubro de 1938 a transmissão histórica, via rádio, de A guerra dos mundos. O que era para ser uma pegadinha de Halloween provocou ondas de pânico nos Estados Unidos. Alguns ouvintes realmente acreditaram que Nova York estava sendo invadida por extraterrestres.

Assim, Welles teve total liberdade criativa para levar seus colaboradores mais próximos do The Mercure theatre para seu primeiro filme. O cineasta novato premiou o espectador com uma série de invenções que até hoje causam impacto nas telas. Welles criou uma lente especial que dá impressão de profundidade do foco. Além disto, o uso de câmara baixa ou alta acentua a grandeza ou insignificância das personagens. Quando é mostrado de baixo para cima, Kane é poderoso e amedrontador.

Welles também inaugura a sobreposição de imagens, a dupla exposição, que dá liga e um dinamismo à história. Esta nunca é linear. Não há obrigatoriamente uma cronologia. A narrativa é repleta de avanços e retrocessos no tempo sem causar confusão ao espectador. À biografia de Kane, são inseridas várias versões do mesmo fato, o que aumenta a curiosidade sobre a personagem, sem deixar uma verdade absoluta.

Welles praticamente antevê o star system que aconteceria em seguida, o culto à personalidade do artista, a celebridade. Kane é o protótipo de sucesso da época: barão da mídia, político, self made man. Mas morre sozinho e triste.

Isto cativa imediatamente o espectador com um segredinho, que já foi há muito tempo desvendado: logo no início do filme, quando morre, o magnata pronuncia a palavra Rosebud. Note-se: ninguém está no quarto! Ninguém viu ou escutou. Somente o espectador. Toda a narrativa a seguir é a da procura do significado desta palavra. A imprensa se reúne para investigar. Mas quem contou aos jornalistas?

Trata-se de uma artimanha notável de Welles que dá início ao percurso de identificação entre espectador e o cinema. O cineasta coloca-nos imediatamente na trama, dentro do filme.

Cidadão Kane tem montagem e ritmo alucinante. Suas idas e vindas lembram o funcionamento da mente, o pensamento que busca conexões a todo o momento, em saltos. Assim como a morte de Kane, somente nós, os espectadores sabemos o segredo de Rosebud. Assista e confira.

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