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Crítica

O Homem do Ano | Crítica

<i>O homem do ano</i>

31.07.2003, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H14

O homem do ano
Brasil - 2003
Ficção/Policial - 116min.

Direção: José Henrique Fonseca
Roteiro: Rubem Fonseca, Patrícia Melo (livro)

Elenco: Murilo Benício, Cláudia Abreu, Natália Lage, Jorge Dória, Carlos Mossy, André Barros, Mariana Ximenes, André Gonçalves, Agildo Ribeiro, Amir Haddad, José Wilker, Paulinho Moska, Lázaro Ramos, Perfeito Fortuna

Trecho do livro O Matador, de Patrícia Melo, publicado em 1995: "Fiquei tão desesperado, comecei a correr, correr, vou correr até morrer, pensei, até explodir, até voar, e corri, e cheguei em casa e me tranquei no quarto e cheirei, a [...] começou a bater na porta, abra, coloquei a cama para bloquear a entrada, abra, abra a porta, abra essa porta, abra essa porta, abra essa porta, abra essa porta, abri, ela começou a berrar comigo, eu ouvia tudo, entendia tudo, ela estava assustada, o ódio começou mesmo na boca e explodiu no cérebro e explodiu nas minhas mãos e eu apertei o pescoço de [...], apertei, apertei, apertei e só parei quando ouvi o osso do pescoço se partir."

Trecho do filme O Homem do Ano (2003), de José Henrique Fonseca, baseado no romance de Patrícia: Máiquel se tranca esbaforido no quarto. Num close desfocado, a câmera mostra outra personagem do lado de fora, socando a porta, gritando alto. Cortes rápidos. Como um João-bobo sem estabilidade aparente, a câmera avança e se afasta dele, cai à direita e à esquerda sem perder o enquadramento. Ele levanta de súbito, abre a porta, grita "cala a boca" - e comete o crime mais sentenciador de sua extensa lista de homicídios.

Os dois pedaços citados dizem respeito ao mesmo ponto da história de Máiquel, o ápice da sua viagem ao inferno psicológico. Bem antes disso, a história começa assim: ao perder uma aposta de futebol, o protagonista, jovem pobre suburbano, pinta o cabelo de loiro e, surpresa, passa a se sentir o maioral. No mesmo dia, porém, um amigo de boteco tira sarro do novo visual. Máiquel nunca pegou numa arma, mas o desafia para um duelo. Mata o sujeito e, surpresa dobrada, ganha agrados da vizinhança e até da polícia. Fez um favor à comunidade. Afinal, o amigo do boteco era um ladrãozinho vulgar, um lixo humano.

Com o tempo, necessidade vai, comodidade vem, as mortes de bandidos viram rotina. Máiquel inclusive confecciona um álbum de fotos com as notícias dos crimes no jornal, como um portfólio - que exibe à roda de magnatas e executivos que pagam a "limpeza das ruas". Máiquel sobe na vida, troca de camisa, de casa, de amigos. Mas quando enfim percebe que nunca de fato trocou de lado, nunca deixou de ser um jovem pobre suburbano, já é tarde demais.

Voltando à comparação dos trechos: ambos são representativos na medida em que ilustram bem a transposição da linguagem literária para o cinema. O texto inteiro de Patrícia é cheio de períodos curtos e reiterações, que traduzem a avalanche de informações e reviravoltas no pensamento de Máiquel. Fica a cargo do diretor José Henrique transformar o estilo verborrágico da autora em frenético virtuosismo visual. Para tanto, tem o auxílio mais do que indispensável do pai. A adaptação do livro feito pelo roteirista/escritor Rubem Fonseca (uma das maiores influências da geração de Patrícia) trata de resumir os acontecimentos mais importantes do livro. Enxugar sem deturpar, essa é a idéia.

Caricatural, mas não irrelevante

Grosso modo, o resultado na tela é muito satisfatório. Filme brasileiro altamente recomendado àqueles que se interessam pelo cinema-verdade de "contrapartida social". A estética granulada, já consagrada em O Invasor (de Beto Brant, 2001), Cidade de Deus (de Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002) e Carandiru (de Hector Babenco, 2003), enche os olhos mais uma vez. O mundo brega do subúrbio é visto com um insistente fetichismo, que torna tudo involuntariamente cômico. Mas não deixa de ser um retrato fiel, direção de arte muito bem executada.

Por sua vez, o elenco de globais não fraqueja diante de uma trama suja e sangrenta. Pelo contrário, se mostra bem afinado. A começar por Murilo Benício, um Máiquel parecidíssimo com outro personagem seu, o Toninho de Os Matadores (de Beto Brant, 1997). Os tiques e trejeitos são mais que eficientes: semblante que varia do "não entendo nada então tô cagando e andando" ao "cara de cachorro perdido", passando por acessos repentinos de fúria e por uma piscadela pesada, do tipo "será que é isso mesmo que estou vendo?".

Destaque também para as mulheres, Natália Lage e Cláudia Abreu, corajosas. Sem esquecer, claro, da figura professoral de Paulo César Pereio, no papel de Seu Humberto, dono machista da loja de animais que, apenas no livro, sofre com as violências da esposa. Já a trinca de ricaços interpretados por Jorge Dória, José Wilker e Agildo Ribeiro aponta em direção ao humor negro - o tal talento todo especial do brasileiro de rir de si mesmo.

Somado àquele retrato caricatural do subúrbio, isso seria escracho demais para um filme violento e teoricamente sério, podem dizer os mais críticos.

Mas esse não é o problema principal da película. O ponto é que, ao se ater às informações essenciais do livro, Fonseca deixa de incluir no roteiro elementos aparentemente adjacentes, mas que iluminam muito bem a personalidade ambígua de Máiquel: a vergonha do sapato estropiado, a piada sobre o macaco hidráulico, a absorção seca de produtos, propaganda e comerciais, a passagem pela prisão, os sonhos com Érica.

Ao fim da jornada, assim, boa parte dos acontecimentos parece ter sido narrado de maneira apressada, sem o necessário aprofundamento, especialmente na metade final. São defeitos salientes, mas nada que ofusque as qualidades mais evidentes de O Homem do Ano. Uma ótima história, com introdução e primeiro ato impecáveis, sombria e relevante num equilíbrio devido. Filme policial, enfim, acima da média. E com um porquinho que é uma graça.

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