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"Lá vai o famigerado metrô", resigna-se Joel, preso do Pavilhão 7 do Carandiru, enquanto filma de dentro da sua cela a movimentação do lado de fora.
Um dos cerca de vinte detentos escolhidos para participar de um curso preparatório de vídeo e das filmagens do documentário O Prisioneiro da grade de ferro (auto-retratos) (2003), Joel se diz amador, mas tem a chance de mostrar, com a câmera na mão, a sua visão da Casa de Detenção.
O resultado não poderia ser, ao mesmo tempo, mais óbvio e angustiante. As imagens escolhidas por ele se confundem com as de todos os outros presos-cineastas: muros, pombos, pipas, o céu, o metrô, o lado de lá. A imaginação dificilmente vai além da urgência visceral de viver a liberdade.
Antes disso, o documentário dirigido pelo estreante em longas Paulo Sacramento, vencedor do É Tudo Verdade 2003, começa de forma arrepiante. Diante de uma tela branca, frases relembram os números do caos do Carandiru, implodido em 2002, que um dia foi o maior presídio da América Latina, talvez do mundo. Um apito ao fundo é constante. Logo percebemos, quando a brancura baixa e se transforma em poeira, que aquela é a sirene ouvida na hora da demolição. De trás para frente, então, os muros demolidos se reconstituem, a poeira some e os escombros voltam a ser carceragem.
O pesadelo retorna em forma integral. Durante sete meses anteriores à desativação, Sacramento filmou, deixou-se filmar e legou aos detentos o direito de registrar a realidade do presídio. São, em boa parte das cenas, duas câmeras digitais: uma na mão do diretor enfoca o preso, que tem a outra consigo. Ganham a tela, então, confissões, mágoas, fúrias, jogos de futebol, rodas de capoeira, shows de rap, cultos religiosos, tatuagens, trabalhos artesanais - tudo ao som onipresente da "Ave-Maria" ao entardecer.
Essa coisa de dividir a autoria do filme com o próprio objeto de análise ainda dará muita discussão. Em teoria, elimina-se a intromissão do indivíduo alheio àquela realidade - e resta a verdade crua vista pelos olhos de quem a vivencia. Na prática, porém, especialmente no caso de O Prisioneiro, as opções do realizador sempre serão mais importantes que as opções dos "câmeras". Seja na estrutura do roteiro, na escolha do material captado ou na hora da montagem, o que fala mais alto é a sua responsabilidade e as suas intenções como realizador.
E mais do que revolucionar o gênero, Sacramento contribui com uma bela lição de abrangência e imparcialidade. Sim, pois o filme possui os atributos de uma legítima investigação jornalística. Vai desde a terrível palestra introdutória aos novos presos, passando por relatos assustados de presos gringos, até entrevistas com ex-diretores do presídio. Tudo prontamente dividido em tópicos didáticos, pavilhões e subtemas.
Ok, há algo de pitoresco quando os detentos filmam os seus pôsteres de mulher pelada e dizem "levanta mais que eu vou dar um zoom", mas, na verdade, o que conduz a narrativa é a busca de Sacramento pela informação pertinente - algumas delas, mesmo com a avalanche de informações sobre o Carandiru, ainda eram parcialmente desconhecidas.
Espanta ver, por exemplo, como os presos abrem as suas celas para os desconhecidos da produção, exibem armas, destilam cachaça, empacotam drogas e detalham métodos de tráfico e de insurreição. Dá nojo constatar que os ratos são muito mais numerosos e as celas de isolamento são ainda menores do que descreviam Dráuzio Varella e Hector Babenco. E nenhum livro ou filme de ficção mostra corpos dilacerados a punhaladas como as cenas verídicas clicadas pelo "fotógrafo" oficial do mortuário do Carandiru.
Assim, com essa variedade de fatos, as duas horas de filme não cansam quem se interessa pelo tema. Um dos poucos problemas fica latente já no final, quando Joel e seu companheiro de cela, Marcos, ganham a tela. Como acompanhamos a sua rotina por uma madrugada inteira, até o amanhecer, tendemos a nos identificar mais com a sua situação do que com o drama dos demais. Aí está o ponto: a transição de uma história para outra é feita, com algumas exceções, de forma muito ligeira - sem tempo para que haja a devida identificação com o espectador.
Seria ideal se O Prisioneiro fosse uma série mais ampla, se tivéssemos um contato mais profundo com a vida de cada um dos vinte detentos selecionados. Trata-se de um tema que está longe de se esgotar.
Ano: 2002
País: Brasil
Classificação: 16 anos
Duração: 140 min
Direção: Héctor Babenco
Elenco: Luiz Carlos Vasconcelos, Milton Gonçalves, Ivan de Almeida, Ailton Graça, Maria Luísa Mendonça, Aida Leiner, Rodrigo Santoro, Gero Camilo, Lazaro Ramos, Caio Blat, Wagner Moura, Sabrina Greve, Júlia Ianina, Floriano Peixoto, Ricardo Blat, Vanessa Gerbelli, Leona Cavalli, Milhem Cortaz, Dionísio Neto, Sabotage