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Existe esse mito de que crítico de cinema só gosta de coisa chata. Não é bem assim. Qualquer pessoa que vai cinco vezes por semana no cinema, cinéfilo ou não, acaba desenvolvendo um certo senso de julgamento. Clichês se tornam mais e mais irritantes. Ouvir sempre as mesmas piadas, ver repetidos a esmo os mesmos efeitos digitais, conferir sempre os mesmos finais felizes, uma hora cansa. E tudo aquilo que foge dessas facilidades, que oferece um razoável nível de elaboração, não demora a ser taxado de "cansativo", "difícil".
Esse desabafo serve, entre outras coisas, para situar o leitor diante do filme russo O Retorno (Vozvrashcheniye, 2003), do estreante Andrei Zvyagintsey. Temos aqui tudo de bom e do melhor para quem não aguenta mais as fórmulas entregues de bandeja ao grande público: linguagem televisiva, diálogos que não levam a nada, personagens rasos e idéias recicladas. O atual campeão do Festival de Veneza - com cinco prêmios, inclusive Melhor Filme - atende os espectadores que sentem falta de densos dramas humanos, que gostam de ser envolvidos, incomodados, chamados a refletir.
Na trama, os irmãos Andrey (Vladimir Garin) e Ivan (Ivan Dobronravov) vivem os obstáculos da adolescência: a necessidade de ser aceito, o desafio de largar a saia da mãe. Mas o retorno do pai (Konstantin Lavronenko), depois de doze anos, inflama essa rotina. Andrey e Ivan não se lembram dele. Instala-se o constrangimento. Para piorar, o pai não explica o tempo de afastamento - apenas diz aos meninos que sairão de férias, para pescar, numa viagem entre homens, para se conhecerem melhor.
Road-movie de formação
Temos aqui a mescla de dois subgêneros narrativos: o road-movie e o romance de formação. O primeiro trata de longas viagens que revelam mais da mente dos viajantes do que da própria paisagem. O segundo diz respeito às grandes histórias de construção do caráter de quem abandona a ingenuidade pueril para perceber a própria individualidade. O falado Diários de motocicleta (de Walter Salles, 2004), por exemplo, é o road-movie de formação de Ernesto Guevara. Aliás, a comparação é providencial: o que Diários tem de didatismo, de simplificação, O Retorno tem de complexidade.
A relação que se estabelece entre o pai e os filhos é um verdadeiro ensaio pedagógico. A resposta de Andrey à aproximação será diferente da de Ivan, pelo simples fato deste ser o caçula e aquele o mais velho. Pequenas coisas como o jeito que o pai olha para uma mulher na rua, o jeito como pede comida no restaurante e o jeito como diferencia os dois filhos se tornam motivo para novas desconfianças.
E o pai impõe respeito. Dessa forma, o conhecimento não se dá por trocas recíprocas, mas por atritos, por concessões. Andrey apanha por desobedecê-lo, mas em seguida é recompensado com o direito de dirigir o carro. Contrário a esse tipo de "educação", Ivan resiste. Assim, o caçula, que antes era ridicularizado pelos outros garotos, sofre a duras penas a formação da sua maturidade. E disso o filme tira a sua força.
O tempo de pensar
Zvyagintsey trabalha essa metáfora freudiana de "matar o pai para conquistar independência" com segurança, com autoridade. Mas não se restringe a ela. O fato de O Retorno ser um filme da Rússia é emblemático. Dá para levantar, sem medo, a seguinte interpretação: como Ivan e Andrey, os russos criados nos anos 90 não reconhecem no antigo Comunismo um laço de sangue. E a severidade do pai, personificação da ex-União Soviética totalitarista, já não atende mais aos anseios de uma geração que se vê abandonada, necessitada de uma boa política renovadora, humanista e solidária.
O filme dá espaço a esse tipo de reflexão pois não atropela o entendimento do espectador, não lhe corta o direito de tirar conclusões próprias. O seu desenvolvimento é lento e introspectivo, sim, mas nunca maçante. Os planos não se estendem em excesso. Pelo contrário, cada fotograma é preenchido por novas informações, sem nunca parecerem vazios ou redundantes.
Basta apenas ao espectador saber respeitar o ritmo do filme. Essa é outra peculiaridade que todo crítico deve conservar: se livrar da mastigação apressada da televisão e apreciar o tempo do cinema. A velocidade é outra. O olhar deve ser outro também. Ter tempo para pensar, para se embrenhar em uma obra como O Retorno, faz com que ela fique ruminando na cabeça muito além do fim da sessão.
Ano: 2008
País: Brasil
Classificação: 1 anos
Duração: 75 min
Direção: Asif Kapadia
Roteiro: Adam Sussman
Elenco: Adam Scott, Kate Beahan, Sarah Michelle Gellar, Peter O'Brien, Sam Shepard, Wally Welch, Brad Leland, Darrian McClanahan, Erinn Allison, Robert Wilson, J.C. MacKenzie, Frank Ertl, Brent Smiga, Angela Rawna, Bonnie Gallup, Peyton Hayslip, Ben Hamby, Erica Jones, Glori Renee Euwer, Peter Cornwell