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A trajetória vitoriosa de Quase dois Irmãos, consagrada no Festival do Rio 2004 - no qual levou os prêmios de direção (Lúcia Murat) e ator (Flávio Bauraqui) - começou em 1998, quando o roteiro do filme - criado por Murat e Paulo Lins (Cidade de Deus) - foi premiado pelo Ministério da Cultura. Mais tarde, em 2002, foi também um dos 10 selecionados para o Laboratório Sundance e garantiu o apoio do Ministério das Relações Exteriores da França. O currículo de sucesso prenuncia um ótimo filme, no entanto, não garante uma produção isenta de defeitos.
O longa-metragem parte de uma premissa interessante: a exploração sociológica do encontro entre militantes de esquerda e prisioneiros comuns nas penitenciárias federais durante a ditadura.
A história é contada em três tempos narrativos diferentes e intercalados. O primeiro, nos românticos anos 50, mostra como um garoto da classe-média, filho de um jornalista apaixonado por samba, tomou contato com o mundo da favela e se tornou amigo do filho de um importante compositor do morro (interpretado por Luis Melodia). Vinte anos depois, o reencontro. Miguelzinho - agora Miguel (Caco Ciocler) - é um preso político, condenado pela oposição ao regime. Jorginho (Flávio Bauraqui), o filho do sambista, é detento comum, preso por assalto a banco. O terceiro momento do filme - na década de 1990 - traz os dois (vividos por Werner Schünemann e Antonio Pompeo) debatendo melhorias sociais no morro, ambos líderes estabelecidos de suas comunidades. O primeiro um deputado, o outro um chefe do narcotráfico, cada um com seus filhos ou protegidos.
Favorecidos pelo alto número de presos políticos no presídio carioca de Ilha Grande durante a ditatura, os chamados "subversivos" - como Miguel - criam normas de comportamento para toda a cadeia. Porém, com o tempo, a quantidade de detentos intelectualizados é superada pela de presos comuns e a balança começa a pender para os marginais. A disputa pelo poder provoca conflitos e culmina com o surgimento da Falange Vermelha (o futuro Comando Vermelho), uma organização criada pelos detentos comuns aplicando as técnicas de organização aprendidas com os militantes.
A análise desse momento crucial para a sociedade brasileira é fascinante. A ascensão das duas organizações - tanto a criminosa quanto a militante - ao poder é um pertinente convite ao debate.
Quase dois irmãos só perde o passo ao intercalar esse momento tão interessante com as dispensáveis tramas da década de 50 - que pouco agrega à história - e dos anos 90, quando os debates entre Jorge e Miguel soam redundantes com as imagens do dia-a-dia da favela, que se parece demais com Cidade de Deus (até os atores do grupo Nós do Cinema são empregados). O mesmo ocorre com as visitas da filha do ex-militante (Maria Flor) ao morro para relacionar-se com um traficante (Renato de Souza), entre outras cenas que chocam, mas trazem pouca relevância.
Tamanha discrepância deixa claro que o tema do coração da diretora - que também foi presa política - é mesmo a parte central. Assim, fica a dúvida da necessidade da divisão narrativa. Felizmente, tais segmentos não prejudicam o coração do filme, em que Flávio Bauraqui (Madame Satã) faz um trabalho excepcional, cheio de vitalidade, e eclipsa a contida, mas também ótima, atuação do competente Caco Ciocler (Desmundo). Sem dúvida, parte do sucesso de Quase dois irmãos pode ser atribuída a Flávio, que transcende suas cenas e ajuda o filme a posicionar-se como um dos melhores do ano no Brasil.
Ano: 2004
País: Brasil
Classificação: 16 anos
Direção: Lúcia Murat
Roteiro: Lúcia Murat, Paulo Lins
Elenco: Caco Ciocler, Flavio Bauraqui, Werner Schünemann, Antônio Pompêo, Maria Flor, Fernando Alves Pinto, Charles Fricks, Pablo Ricardo Belo