|
||||
No Oscar deste ano, o prêmio de Melhor Documentário serviu mais para apaziguar do que para premiar o melhor. Enquanto o favorito Na captura dos Friedmans (Capturing the Friedmans, de Andrew Jarecki, 2003) polemizava, levantando ambigüidades sobre um caso de pedofilia, com certa aspiração ao suspense, o vencedor Sob a névoa da guerra (The fog of war: Eleven lessons from the life of Robert S. McNamara, 2003) investiu no tradicionalismo.
O diretor Errol Morris, documentarista experiente, entrevista Robert S. McNamara - ex-Secretário de Defesa dos EUA - de frente, depoimento voltado para a câmera, fatos lembrados em ordem cronológica, divididos didaticamente em tópicos (as onze lições) - enfim, sem floreios. Mas isso não significa que o filme seja desinteressante ou monótono. Pelo contrário, tem tudo para criar controvérsias. Primeiro, devido à importância do entrevistado. Depois, pela magnitude e atualidade do tema.
Garoto prodígio, MBA em Harvard aos 23 anos, McNamara serviu nas Forças Aéreas dos aliados na II Guerra. Aposentou-se como tenente-coronel em 1946, quando ingressou na Ford. Em 21 de janeiro de 1961, apenas cinco semanas depois de ter se transformado no primeiro presidente da montadora a não ser um membro da família Ford, McNamara aceitou o convite do recém-eleito John Kennedy (1917-1963) para chefiar a Defesa. Seguiu secretário de 1961 a 1968, época de três momentos cruciais da geopolítica mundial no século 20: a crise cubana dos mísseis em 62, o assassinato de JFK em 63 e o início da Guerra do Vietnã.
Por seu sucesso, McNamara era visto como uma pessoa calculista, presunçosa e intransigente. Quando aceitou ser entrevistado para o programa de TV First Person, que Morris mantém na rede pública norte-americana PBS, havia negociado apenas sessenta minutos de interrogatório. Acabou falando por um total de vinte horas, o que possibilitou o longa. Errol se surpreendeu quando o ex-secretário revelou, ainda nos primeiros cinco minutos, números inéditos e assustadores dos bombardeios ao Japão na Segunda Guerra. E a franqueza norteia todos os demais relatos, num legítimo acerto de contas com a História.
Se o documentário muitas vezes é simpático à figura de McNamara - visto até hoje como o grande vilão da Guerra do Vietnã -, isso justifica-se pela farta documentação e pelas gravações da época. Espanta, por exemplo, ouvir fitas oficiais e constatar que Kennedy e o secretário eram contrários ao envio maciço de tropas, mas a posição de McNamara foi sumariamente atropelada pelo sucessor de JFK, seu vice Lyndon Johnson (1908-1973). O novo presidente não apenas elevou o conflito a prioridade nacional, também escalou o secretário como estrategista e constrangido porta-voz de tudo o que ocorria no Vietnã.
Assim, as palavras de McNamara se impregnam de emoção e de certo rancor. Alia-se a isso a trilha sonora dramática de Philip Glass. Por ser um nome badalado, o compositor costuma superestimar a sua participação, criar músicas invasivas demais. Aqui, felizmente, Glass mostra-se sensato - e consegue orqüestrar com sensibilidade uma narrativa cada vez mais tensa.
O que marca mais, porém, são as ponderações atuais do líder aposentado, 88 anos completos em 2004. A névoa da guerra, aliás, é a imagem poética que define a visão estreita dos homens diante da batalha: Hitlers, Castros, McNamaras, Osamas e Churchills nunca saberão refletir quanto os seus atos, a partir daquele momento, afetarão a humanidade.
Em tempo, eis as onze lições do ex-Secretário de Defesa: Tenha empatia pelo inimigo, Proporcionalidade deveria ser uma regra na guerra, Existe algo além de nós mesmos, Acreditar e ver estão, ambos, frequentemente errados, Esteja preparado para reexaminar as suas razões, Consiga dados, A racionalidade não nos salvará, Não se pode mudar a natureza humana, Maximize a eficiência, Para fazer o Bem, talvez você precise se aproximar do Mal e Nunca diga nunca. Como se vê, o recado à gestão Bush - que desrespeita pelo menos os seis primeiros mandamentos - é claríssimo e urgente.