Sujeito excêntrico, Adam Sandler se especializou no papel de louco incontido. Tanto nas temporadas em que atuou no Saturday Night Live quanto na maioria dos seus filmes - o melhor deles Embriagado de Amor (Punch-Drunk Love, de P.T. Anderson, 2002) -, personifica o homem que se enfurece de repente. Já Jack Nicholson não faz questão de esconder a sua persona careteira e ameaçadora. Em 1994, durante um acesso de raiva, destruiu o vidro de um carro com um taco de golfe. Em suma, dois esquentadinhos. Colocá-los para dividir um filme sobre controle de raiva parece, então, uma interessantíssima idéia.
E Tratamento de choque (Anger Management, 2003), de Peter Segal, começa bem promissor. Dave Buznik (Sandler), designer de roupas para gatos gordos, se envolve num mal-entendido num vôo de negócios. Pede fones de ouvido para uma comissária que não o atende. Insiste, sempre num tom de voz quase inaudível (alguém se lembra da Cadete Hooks de Loucademia de Polícia?). Já em alerta, a aeromoça diz: Por favor, não grite, senhor, eu sei que nosso país atravessa um momento difícil.... Dave tenta acalmar os ânimos, mas logo arma-se um circo ao seu redor, como se fosse uma operação para desarmar um insano suicida do Al Quaeda.
No fim das contas, Dave acaba no tribunal, condenado erroneamente a ingressar num programa de controle de agressividade. Como instrutor, surge o especialista Dr. Buddy Rydell, o personagem de Nicholson. O título em português diz respeito às técnicas de persuasão desenvolvidas por ele - baseadas no atrito, no estímulo da violência. Buddy pretende exorcizar os demônios interiores de Dave, e pra isso começa a dividir a cama com o paciente, acompanhá-lo no trabalho, expô-lo ao vexame público e periga até roubar-lhe a namorada (Marisa Tomei).
Como é de se esperar, o expansivo e professoral Nicholson, bem à vontade, domina a cena - seja quando discursa com um inabalável sorriso mordaz ou quando simplesmente se espreguiça. Mas lá pela metade do filme o bom impacto do começo perde a força. À medida que Dave se descobre com o tratamento, o personagem de Nicholson perde espaço - e isso significa que sobram na tela, apenas, alguns coadjuvantes forçados, uma trilha sonora irritante e as piadas de baixo calão adicionadas por Sandler ao roteiro do estreante David Dorfman, sobre tamanhos de pênis, lésbicas, flatulência, ejaculação precoce, etc.
Aliás, Sandler deveria, para a saúde de sua carreira, procurar um terapeuta de verdade. Sexualidade reprimida tem cura.
Mas não é só isso. Em certo momento, quando conhece o travesti Galaxia (Woody Harrelson, hilariante), Dave brinca e diz que seu nome verdadeiro é Melvin. Esse é o nome do personagem de Nicholson em Melhor é impossível (As Good as it gets, de James L. Brooks, 1997) - filme que trata, também, de um neurótico agressivo que encontra a paz de espírito no amor. Mas o que seria uma comparação elogiosa se transforma numa heresia. A direção frouxa de Segal (Corra que a polícia vem aí 33 1/3, O professor aloprado 2) não se assemelha em nada ao controle que Brooks exerce, de ponta a ponta, sobre a sua obra.
No fundo, Tratamento de choque também frustra as expectativas criadas no começo por abandonar a autocrítica e desembocar na débil auto-ajuda. Assim, o que era a simpática aventura de Dave por matar seus fantasmas se transforma, na segunda metade do filme, num guia espirituoso e alto-astral para novaiorquinos nervosos e depressivos. Claro que quem não vive na Big Apple, nem sofre diariamente com medo de ataques terroristas, logo se entedia. E se entedia bastante! Tem de tudo, desde cenários digitais cheios de arranha-céus, jogo dos Yankees e conselhos amorosos do ex-prefeito Rudolph Giuliani (!) até confraternização no Central Park ao som de I Feel Pretty, do musical West Side Story. Isso sem contar o patriotismo forçado, os personagens se cumprimentando com continência, as evidentes mensagens militares...
Tratamento de Choque, enfim, é recomendável àqueles que desfrutam da meia-entrada. É o preço exato de um filme que tem apenas uma parte bacana: a primeira metade iluminada pela presença de Jack Nicholson.
Ano: 2003
País: EUA
Classificação: LIVRE
Duração: 0 min
Direção: Peter Segal
Roteiro: David Dorfman
Elenco: Adam Sandler, Jack Nicholson, Marisa Tomei, Luis Guzmán, Woody Harrelson, John Turturro, Kevin Nealon, Allen Covert, Heather Graham, Krista Allen, Derek Jeter, John C. Reilly