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Filmes futuristas normalmente se parecem com vitrines de butique. O deslumbramento do diretor de arte com os seus badulaques costuma eclipsar a atenção do espectador na história. Violação de privacidade (The final cut, 2004), estréia do jordaniano Omar Naim como roteirista e diretor de ficção, de cara surpreende por ser extremamente sóbrio nesse terreno.
O espaço em que vive Alan Hakman (Robin Williams) não é muito diferente da assepsia kubrickiana cada vez maior da nossa modernidade. A única excentricidade é a sua ferramenta de trabalho: um computador cujo teclado não é comandado por voz, nem por toques em telas cristal, mas feito de madeira. O paradoxo é facilmente explicado. Quer passar ostensivamente a idéia de que Hakman é um artesão, raridade num mundo automatizado.
O personagem é um montador, empregado numa empresa de vídeo que armazena em chips a memória das pessoas. Ele deve selecionar as melhores lembranças desde o nascimento, deletar traumas, para exibir um filme agradável no funeral do sujeito. Muitos o criticam por julgar - e absolver - os pecados mortais dos falecidos. Aqui a história revela a sua maior influência: o tratamento apocalíptico da perda de identidade e da memória típico de Philip K. Dick (1928-1982).
Mas a coisa aperta quando o montador descobre, no chip de um alto executivo da empresa, algumas imagens que dizem respeito à sua própria vida. Hakman se assemelha muito a outro personagem de Williams. Em Retratos de uma obsessão (2002), ele interpretava um atormentado revelador de fotos que persegue uma família em crise. Ambos os filmes tratam da ética nestes tempos de rotina vigiada, tipo Big Brother.
Identidade e privacidade, assim, pavimentam a base teórica de um filme muito bem pensado. A fim de lhe dar mais substância, Naim relaciona o ofício de Hakman à tradição dos antigos comedores de pecado, párias que serviam às suas vilas unicamente para absorver, em troca das moedas então colocados nos olhos de doentes terminais, os pecados dos mesmos. Hakman se enxerga como um pária do seu tempo. Limpa a memória dos chips alheios por não conseguir esquecer os seus próprios fantasmas. Martírio - outra semelhança com o revelador de fotos.
Aos poucos, o futurista Violação de privacidade mostra que não é uma vitrine de tralhas mas periga se transformar numa butique de filosofices. Bom na teoria, perde pique na prática. Naim incorre em dois erros de principiante: a falha direção de atores - nem Williams parece saber direito como tocar seu personagem - e o excesso de didatismo, principalmente em flashbacks. Se fica a meio caminho, pelo menos tem o cada vez mais incomum talento de nos manter pensando o tempo todo.
Ano: 2004
País: Eua, Canadá, Alemanha
Classificação: 12 anos
Duração: 95 min
Direção: Omar Naim
Elenco: Robin Williams, Mira Sorvino, Jim Caviezel, Mimi Kuzyk, Genevieve Buechner, Leanne Adachi, Thom Bishops, Stephanie Romanov