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Jerry Lewis | Relembre a trajetória do comediante

Ator faleceu aos 91 anos

16.03.2006, às 00H00.
Atualizada em 20.08.2017, ÀS 18H35

Os personagens de Jerry Lewis, ator que faleceu aos 91 anos, evoluíram do rapaz ingênuo ao adulto cínico e crítico, ficando, na maturidade, mais sérios e dramáticos

As emissoras de TV costumam programar e exibir os filmes do ator, diretor e produtor Jerry Lewis naqueles horários mais impróprios, quando o público é reduzido. Por este motivo, sua obra merece uma revisão, para escapar ao estigma de filme descartável, colocado nos horários mortos, só para preencher o tempo da telinha e do eventual e insone espectador.

Dotado de veia crítica e humor inteligente, Jerry Lewis enquadra-se no time de comediantes e cineastas norte-americanos de origem judaica (como os anárquicos Irmãos Marx, o subestimado e metalingüístico Mel Brooks e o intelectual Woody Allen), que conseguem, com seus filmes, divertir o público e, ao mesmo tempo, fazem pensar.

A carreira cinematográfica de Lewis pode ser dividida em três períodos distintos, representando tanto as etapas de seu próprio amadurecimento (artístico, humanístico, pessoal) como dos personagens que interpreta: o primeiro momento caracteriza-se pela comédia infiantil, sentimental e ingênua e pela parceria com o galã Dean Martin; o segundo, já em atuação solo e sendo também diretor e produtor, é marcado por um humor mais elaborado e crítico, adulto, portanto; e, no último, seus filmes e seus personagens, agora maduros, ficam sérios e aproximam-se do drama e da tragédia, que o ator conheceu de perto na vida pessoal.

O Garotão

O comediante Jerry Lewis (cujo nome real é Joseph Lewitch), nascido em 1926 em Newark, New Jersey, despontou para a fama em shows apresentados em restaurantes e casas noturnas. Ao lado do cantor romântico de ascendência italiana Dean Martin (falecido em 1995), entretia os freqüentadores desses lugares: enquanto o galã tentava cantar músicas melosas, seu desastrado partner criava confusões. Um representava o modelo de masculinidade, bonito e sedutor, enquanto o outro era o moleque irreverente. Logo, Martin e Lewis converteram-se em mais uma dupla hollywoodiana, que, a exemplo de Abott e Costello ou Bing Crosby e Bob Hope, fazia o humor brotar das diferenças individuais.

Em O Palhaço do Batalhão, de 1951, filme do início da carreira da dupla, por exemplo, Jerry Lewis interpreta o recruta atrapalhado e Dean Martin, o oficial responsável. A obra mais representativa deste momento, contudo, é O Garotão, dirigido por Norman Taurog em 1955, uma refilmagem de A Incrível Suzana, realizado por Billy Wilder 13 anos antes. Perseguido por bandidos, um barbeiro desastrado (Jerry Lewis) precisa esconder-se em um colégio, disfarçado como um garoto. Para não fugir à regra, Dean Martin acaba por conquistar a bela professora, sobrando para o cômico uma adolescente apaixonada (mais jovem e, portanto, mais adequada à sua psique juvenil).

Os três últimos filmes da dupla foram dirigidos por Frank Tashlin (que havia trabalhado com desenhos animados), o verdadeiro mentor de Lewis, que acrescentava à trama elementos críticos, como a alusão à perseguição macartista presente em Artista e Modelos, de 1955, na qual o comediante vive um fanático por gibis que sonha com fórmulas secretas. Dean Martin, um desenhista de quadrinhos, rouba as idéias que o amigo de quarto tem durante o sono e as transforma em um sucesso editorial. A condenação aos comics, realmente ocorrida na década de 1950, sintetiza e ridiculariza a paranóia vivida naqueles tempos de Guerra Fria.

Após a separação de Lewis e Martin, Frank Tashlin, que respondeu pela direção de vários filmes protagonizados por Jerry Lewis (entre eles O Rei dos Mágicos, Cinderelo Sem Sapato, Errado prá Cachorro e Bagunceiro Arrumadinho), procurou modificar a personalidade de seus tipos, rompendo, aos poucos, a imagem de eterno garoto. Mas, de acordo com o crítico Nöel Simsolo, se, com Tashlin, a impotência sexual do personagem desaparece, as outras taras que o achacavam são mantidas: debilidade física, incapacidade de triunfar.

Em Bancando a Ama-seca, dirigido por Tashlin em 1958, Lewis é o rapaz do interior apaixonado por uma conterrânea que se tornou estrela de cinema. Quando ela se torna mãe solteira de trigêmeos, cujo pai é um toureiro espanhol, Jerry passa a tomar conta dos bebês para evitar um escândalo. No final, casa-se com a irmã mais jovem da atriz e tem com ela mais filhos do que o toureiro, sobrepujando o arquétipo da masculinidade latina. Herói da cidade, Lewis ganha uma estátua, ascendendo ao patamar de homem, de macho e de pai de família. Na vida real, o ator teve seis filhos com sua primeira esposa e mais um no segundo casamento.

Idade Adulta

Ao iniciar sua obra como cineasta, Jerry Lewis já estava pronto para deixar de lado a imagem de jovem ingênuo e sexualmente inexperiente. Em Mensageiro Trapalhão, de 1960, o primeiro filme que dirigiu, interpretava um funcionário de hotel sentimental e atrapalhado, mas, no filme seguinte, O terror das mulheres, de 1961, fazia rir da própria fórmula que o consagrou: rejeitado pela garota mais sexy da escola, Lewis deixa sua cidade de interior disposto a não se relacionar com mais nenhuma mulher, mas emprega-se como ajudante em uma pensão para moças. Este filme não apenas marca o início da transição na obra do comediante do ponto de vista da caracterização dos tipos que interpreta, mas também mostra a maturidade do cineasta no que concerne à narrativa e à linguagem cinematográfica. Por este motivo, o reconhecimento por parte da crítica, principalmente francesa (Jean-Luc Godard e Georges Sadoul saudaram sua genialidade nos anos 1960), não tardou.

O ponto alto deste período é, sem dúvida, a sua obra-prima O Professor Aloprado (infinitamente melhor que as baboseiras escatológicas feitas por Eddie Murphy recentemente), que dirigiu em 1963. Este filme faz uma crítica aos padrões (de beleza, de masculinidade e de comportamento) impostos pela sociedade. Inspirado no clássico da literatura O Médico e o Monstro, escrito pelo inglês Robert Louis Stevenson em 1886, o enredo mostra o feio e desajeitado professor de química Julius Kelp (o melhor papel de Jerry Lewis), transformando-se, por meio de uma beberagem produzida em laboratório, no conquistador e arrogante Buddy Love (uma ácida paródia aos personagens imterpretados por Dean Martin), para seduzir a bela aluna vivida por Stella Stevens. Muito antes de Woody Allen mostrar nas telas suas mazelas familiares, Lewis apresentava, neste filme, a mãe dominadora e o pai submisso. E, quando o tímido professor parece vencer a disputa com o galã insensível, o jogo de aparências, que continua até a seqüência final, leva a uma última gag que distancia o espectador do desfecho moralista típico do cinema de Hollywood, invertendo a expectativa. É interessante notar que o protagonista tem o nome verdadeiro de Groucho Marx, Julius.

Assim, nos filmes posteriores, dirigidos ou não por ele, Lewis aproxima-se mais de Buddy Love do que de Julius Kelp. Em Boeing Boeing, de 1965, interpreta um don juan envolvido com três aeromoças e divide a cena com outro playboy das comédias hollywoodianas, Tony Curtis. Também em Um golpe das arábias, realizado em 1968, seu personagem é o inconseqüente dono de uma boate londrina envolvido por acaso com malfeitores. Já em De Caniço e Samburá, de 1969, é o marido envolvido em uma trapaça por sua esposa infiel. Ao descobrir a traição, engendra uma vingança. Mais romântico, mas não menos aproveitador, o personagem de Três em um Sofá, que dirigiu em 1966, quer casar-se com uma psiquiatra, mas, para realizar seu desejo, precisa disfarçar-se com vistas a conquistar três pacientes que rejeitam os homens. Todos estes tipos têm uma postura cínica, mais adulta, que os diferencia do garoto ingênuo.

Maturidade

Na década de 1970, seus filmes e seus personagens começaram a ficar mais sérios e atormentados: em 1972, produziu e dirigiu o ainda inédito The Day the Clown Cried, ambientado na Alemanha nazista. Em um campo de concentração, um palhaço (vivido por Lewis) distrai as crianças antes de serem levadas às câmaras de gás. Uma última tentativa de fazer comédia se deu em 1982, com As loucuras de Jerry Lewis, uma sucessão de esquetes humorísticos anacrônicos, que não fez sucesso junto ao público.

Seus personagens, agora carrancudos, refletem as agruras de sua vida pessoal, como a esclerose múltipla de seu filho adotivo e seus problemas de saúde (dores na coluna provocadas por uma queda que sofreu durante uma apresentação em Las Vegas, um enfarte, a depressão que o levou a uma tentativa de suicídio, entre outras enfermidades). Seu casamento terminou quando Jerry Lewis deixou a esposa Patti, com quem estivera casado por 36 anos, para ficar com dançarina SanDee Pitnick, um quarto de século mais nova que ele. E, depois de décadas de rompimento, o comediante se reaproximou de seu antigo parceiro, Dean Martin, que faleceu no Natal de 1995.

A imagem que fica do ator e cineasta, nesta fase de sua vida, é a do comediante sisudo e solitário que interpretou em O Rei da Comédia, realizado por Martin Scorsese em 1981. Neste filme, Lewis é o astro assediado por um fã obstinado (mais uma atuação magistral de Robert De Niro), que pretende seguir os passos de seu ídolo, nem que tenha de seqüestrá-lo para chegar aos palcos.

Jerry Lewis atuou em diversos filmes feitos para cinema - em alguns, sem ser creditado - e também para TV nas décadas de 1980 e 1990, muitas vezes em papéis secundários, como Luta pela Vida (no qual faz um pai que precisa encontrar a cura para a filha doente), Trapalhões do Futuro, Cookie e Arizona Dream (como o tio de Johnny Depp). Participou, ainda, em 1988, do seriado O Homem da Máfia, vivendo o violento líder de uma família de contraventores.

Para o público, entretanto, a verdadeira imagem é do cômico subversivo e zombeteiro, que se insurge e consegue ultrapassar os obstáculos que a sociedade ou a moral vigente colocam em seu caminho. Palhaço de cara limpa, mesmo quando usa disfarces, diverte e emociona com sua falsa ingenuidade ou sua postura cínica e crítica, que também está presente na pessoa, um liberal intransigente e combativo de primeira hora imerso no ambiente normalmente conservador, hipócrita e medíocre de Hollywood.

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