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A perversão, fonte da violência de qualquer film noir, é uma característica humana. A violência dos filmes de gângster tem outra raiz, a social. Capones e Corleones optam pelo crime mais para transgredir o determinismo que os cerca do que para aplacar obsessões. É um instinto de sobrevivência, não uma depravação. Dificilmente você verá Martin Scorsese dirigindo um noir. Agora, é impressionante como as marcas autorais das obras do gangsterismo se repetem em sua filmografia - de 1973 a 2006, de Caminhos Perigosos a Os Infiltrados. Nos filmes de máfia, de macho do diretor, seja em Taxi Drive, em Os Bons Companheiros, em Cassino ou em Gangues de Nova York, é tudo pelo social. O cultuado policial chinês Conflitos internos, que Scorsese refilma na forma de Os Infiltrados, se encaixa quase que darwinianamente na escala evolutiva do cineasta. Por quê? Repetem-se os temas e aprofundam-se as abordagens. No mundo visto de dentro do gênero não há espaço para variações tanto no andar de cima, a lei, quanto no de baixo, a ilegalidade. Essa máxima vale para todos os filmes citados aqui, mas não faltam personagens tentando quebrá-la. John Civello, Travis Bickle, Jake LaMotta, Henry Hill, Amsterdam Vallon... Cada um dos tipos consagrados do cineasta tentava furar o papel que lhe cabia no estrato social através do conflito. Desafiar o sistema, seja destruindo-o ou destruindo a si mesmo, era o caminho. Em Os Infiltrados, não. Para mudar, para se tornarem os departed (aqueles que partiram) do título original, Colin Sullivan e Billy Costigan deixam-se enquadrar. Você já deve conhecer a trama a essa altura: Costigan é o policial infiltrado no banditismo, Sullivan é o gângster infiltrado na polícia. Quem melhor para espionar a gangue do que um policial que vem de uma família de bandidos? O mundo e o submundo dos irlandeses de Boston não permitem transições, e é flertando com o determinismo que os dois personagens interpretam os papéis que lhes cabem, mantendo as aparências, e transformando-se de verdade através da aparência. Implodir o fingimento é uma forma de implodir o sistema. Criar dois camaleões, como os descritos acima, é uma mudança totalmente oposta de posição empreendida por Scorsese, e não há dúvidas de que isso se reflete nas crises de identidade que conduzem adiante a trama de Os Infiltrados e que impregnam cada fotograma seu, como também já pontuavam o longa chinês. Conflitos internos é mais dramático, no sentido em que as experiências são mais individualizadas, emocionais. Em Os Infiltrados, é como se qualquer outro pudesse estar no lugar de Costigan ou de Sullivan. O que importa é o que eles representam. O que nos leva de volta à violência, peça fundamental nesse jogo de transmutações e ponto de intersecção na trajetória dos dois camaleões. Peça fundamental, aliás, ainda que externa e incontrolável, na vida de todos nós. Sempre tem alguém que acusa Scorsese de estetizar o sangue. Tudo bem, a câmera lenta está sempre lá, tocando junto com a música dos Rolling Stones, enquanto o bandido saca o seu revólver no calor da carnificina. O cineasta embeleza, sim, mas não artificializa nada. Filmar a violência é uma forma de tentar entendê-la, tentar entender aqueles que a utilizam e, por extensão, compreender as próprias divisas da nossa sociedade.
Ano: 2006
País: EUA
Classificação: 18 anos
Duração: 149 min
Direção: Martin Scorsese
Elenco: Leonardo DiCaprio, Matt Damon, Jack Nicholson, Mark Wahlberg, Martin Sheen, Ray Winstone, Vera Farmiga, Anthony Anderson, Alec Baldwin, Kevin Corrigan, James Badge Dale, David O'Hara, Robert Wahlberg, Kristen Dalton, Thomas B. Duffy, Dick Hughes, Chance Kelly