A morte é grande chance de redenção e elevação do artista - a história está cheia de Edgar Allan Poes e Vincent van Goghs que tiveram seu valor inflacionado post mortem. Michelangelo Antonioni, contudo, não teve o mesmo destino. Sua morte foi ofuscada pelo falecimento de outro cineasta que, já cultuado em vida, somava mais atributos para ser eternizado nos obituários. Antonioni morreu no mesmo dia em que o sueco Ingmar Bergman, em 30 de julho de 2007.
Assim, o centenário do diretor, nascido em 29 de setembro de 1912, seria sua última oportunidade de ascensão. Fora os especiais obrigatórios publicados ao longo desta semana (muitos ornados com expressões como "gigante esquecido"), porém, pouco se fez para levar o nome de Antonioni a uma nova geração.
BlowUp
Lanotte
Michelangelo Antonioni
antonioni
Il deserto rosso
Antonioni1
Cineasta dos espaços
Formado em economia pela Universidade de Bolonha, Antonioni começou como crítico de cinema, em 1935. Em 1940, iniciou seus estudos no Centro Sperimentale di Cinematografia, mas abandonou o curso apenas três meses depois e seguiu para o exército. Em 1942, coescreveu o roteiro de Un pilota ritorna com Roberto Rossellini e trabalhou como diretor assistente em I due Foscari, de Enrico Fulchignoni. Em 1943, depois de assistir ao cineasta Marcel Carné em Les visiteurs du soir, dá início a sua carreira como documentarista, em uma série de estudos em curta-metragem sobre as classes trabalhadoras inaugurada por Gente del Po, sobre pescadores da Planície do Pó.
Seu primeiro longa-metragem, Crimes da Alma (Cronaca di un amore, 1950), já aponta o estilo contemplativo que percorrerá toda a sua obra - longas cenas e uma arquitetura que se sobrepõe aos personagens e à trama. A seguir vem La signora senza camelie (1953), sobre a decadência de uma estrela de cinema; I vinti (1953), sobre delinquência juvenil; As Amigas (Le amiche, 1955), focando em mulheres de classe média em Turim (filme em que os longos takes e as histórias desconexas, marcas do diretor, ganham ainda mais ênfase); e O Grito (Il grido, 1957), sobre o trabalhador de uma fábrica e sua filha. Seguindo caminho oposto ao do neorrealismo italiano - estilo cinematográfico do pós-guerra, inaugurado em 1945 por Roma, Cidade Aberta de Rossellini e marcado pelo uso de locações externas, atores não profissionais e histórias focadas na vida de pessoas comuns -, Antonioni cria um cinema da alienação social, focado na classe média italiana, onde questiona as convenções morais e a felicidade condicionada pelos bens materiais. Nascido em uma família de proprietários de terras, o diretor dizia preferir os amigos "proletários" pois carregavam uma verdade que não existia nas crianças burguesas.
A Aventura (L'avventura, 1960) marca o primeiro sucesso internacional do cineasta e o início da sua parceria com a musa (e amante) Monica Vitti. O filme, entre vaias e aplausos, levou o prêmio do júri no Festival de Cannes, e inaugurou sua "trilogia da modernidade e seus descontentamentos", seguida por A Noite (La notte, 1961), estrelado por Jeanne Moreau e Marcello Mastroianni, e O Eclipse (L'eclisse, 1962), com Alain Delon. Além da presença de Vitti, os filmes têm estéticas - fotografia preto e branco, a contemplação sobreposta à ação - e temáticas similares - a alienação do homem no mundo moderno, as convenções morais e sociais e seu peso sobre os relacionamentos amorosos. Seu primeiro longa colorido, Il deserto rosso (1964), também estrelado por Vitti, compartilha dos mesmos temas, adicionado a cor como força dramática na estética de Antonioni.
O acordo com a MGM
O diretor assina então um acordo com o produtor Carlo Ponti para três filmes em inglês para a MGM, dando origem a Blow-Up - Depois Daquele Beijo (Blowup, 1966), o mais cultuado da sua filmografia, vencedor do Grand Prix em Cannes. Livremente baseado em um conto do escritor argentino Julio Cortázar, o longa, estrelado por David Hemmings e Vanessa Redgrave, é um retrato sensorial da Londres sessentista, seguindo um fotógrafo de moda e sua acidental descoberta de um assassinato. Entre as participações especiais, Jane Birkin, Michael Palin (Monty Python) e o Yardbirds, grupo de rock que contava então com Jimmy Page e Jeff Beck, tocando "Stroll On" (com direito a Beck destruindo sua guitarra depois que o amplificador falha). Apesar de continuar a preferir sons ambientes como "trilha sonora", o longa conta com pontuais comentários musicais do pianista Herbie Hancock, que surgem quando um rádio é ligado ou um disco é colocado na vitrola.
Ainda do contrato com a MGM, Antonioni realiza Zabriskie Point (1970), seu primeiro filme situado nos EUA, e um fracasso de público e crítica. Tendo o rock como trilha absoluta, o longa conta com músicas compostas especialmente pelo Pink Floyd, além de Grateful Dead e Rolling Stones. Com o terceiro filme, Profissão: Repórter (Professione: reporter, 1975), estrelado por Jack Nicholson e Maria Schneider, Antonioni fallha novamente com o público, mas volta a agradar a crítica.
Antes do fim
Mais uma vez com Monica Vitti, o cineasta filma Il mistero di Oberwald (1980),um experimento técnico gravado em vídeo e transferido para película baseado na peça de Jean Cocteau, L'Aigle à deux tête. Identificazione di una donna (1982) retoma os temas da sua trilogia dos descontentamentos e marca seu último longa antes de sofrer um derrame, em 1985. Parcialmente paralizado e incapaz de falar, o diretor segue trabalhando, filmando documentários para a TV italiana e Além das Nuvens (Al di là delle nuvole, 1995), realizado com a ajuda de Wim Wenders. Seu último trabalho é lançado em 2004, na antologia de curtas Eros. Anunciado como erótico, o segmento "Il filo pericoloso delle cose", uma colagem de pinturas ornada pela música "Michelangelo Antonioni" de Caetano Veloso, termina a carreira do diretor em desgosto com a crítica.
A importância de Antonioni está principalmente na transgressão. Aprecie ou não o seu jeito de filmar - entre seus críticos mais renomados estavam estavam o próprio Bergman e Orson Welles - o cineasta conseguiu com suas longas tomadas transpor regras cinematográficas, abrindo caminho para as estéticas de cineastas como Stanley Kubrick e Wim Wenders (que declaram abertamente a influência do diretor sobre seu trabalho). Sua filmografia pode ser um gosto adquirido, mas seu nome certamente merece um lugar entre os mestres do cinema.