É dia 8 de agosto, e Kim Sung-nam (Kim Yeong-ho), depois de fumar maconha com turistas em Seoul e fugir para não ser pego pela polícia, desembarca em Paris. Assim que chega na França, o sul-coreano recebe em inglês um conselho, misturado com ameaça: "Tome cuidado". Está montado o tom da comédia dramática Noite e Dia, do cultuado cineasta Hong Sang-soo.
A câmera acompanha Sung-nam pelas ruas de Paris, em meio à comunidade coreana, com a curiosidade dos olhos de um viajante. Sang-soo coloca a câmera sobre o tripé e filma cada cena sem mudar o eixo, aproximando a câmera da ação apenas com o zoom-in - como se fosse um turista recém-chegado à cidade, estanque numa esquina, atrás de objetos para fotografar. A câmera se encanta por Paris a ponto de esquecer dos personagens e sair focalizando museus à distância, desavergonhadamente. E o personagem se encanta a ponto de virar outra pessoa.
Não sabemos ainda como Sung-nam está mudado (na verdade, nas duas horas e vinte de filme, são apenas uns cinco desbocados minutos, próximos do final, que nos revelam o "verdadeiro" Sung-nam). Sabemos apenas que seu passado o visita esporadicamente na sua estada francesa. Sung-nam encontra, por exemplo, uma velha namorada coreana, de quem não se lembrava, e que abortou seis vezes enquanto se relacionava com ele. Olhando para o cara, lendo uma Bíblia tão entretido, nem parece um Don Juán. Deve ser a influência das belas ingrejas de Paris que tornou Sung-nam tão temente a Deus.
A genialidade de Noite e Dia - título que já dá a entender uma certa duplicidade - é nos apresentar Sung-nam num momento em que ele não é exatamente Sung-nam, e sim uma representação de si mesmo, tentando se habituar ao estrangeiro. Nesse processo de assimilação convivem duas pessoas em uma, praticamente, e a graça do filme é poder acompanhar (e decifrar) "os dois", seja Sung-nam dividindo ostras com garotas, telefonando para casa, fazendo tai chi no parque, ou disputando um braço-de-ferro com um norte-coreano.
A aparente casualidade de Noite e Dia não tem nada de casual. Sang-soo conta uma história leve de amor e humor, mas, ao mesmo tempo, está discutindo a validade dessa imagem que construímos socialmente (sim, porque, como o coreano na França, estamos no teatro do dia-a-dia sempre tentando construir um duplo melhorado de nós mesmos). Não por acaso, Sung-nam se apaixona por uma estudante de arte que plagia o trabalho de outra estudante - é apenas um exemplo de identidade ilegítima que se legitima aos olhos dos outros. Tudo em Noite e Dia é uma questão de construção de imagem, auto-imagem (sintetizada na idealização do sexo feminino com que Sung-nam depara no museu, cena reproduzida no pôster do filme).
E como Woody Allen ensinava, todos dizem "eu te amo", e em mais este ponto Sung-nam não é diferente de nós.