Se um dos temas centrais do cinema brasileiro da Retomada foi o deslocamento, a fuga, como reflexo da abertura do país aos desvios e atalhos da globalização, hoje os filmes lidam com outro Brasil, pós-Lula, autosuficiente mas preso aos seus próprios limites. É o terror da estagnação, do arcaísmo social, presente em obras nacionais recentes que estão se tornando paradigmas, como Trabalhar Cansa (2011) e O Som ao Redor (2012), e presente também, de forma mais discreta, em O Abismo Prateado (2011).
o abismo prateado
o abismo prateado
o abismo prateado
O cineasta cearense Karim Aïnouz passa por esses dois processos históricos. Filmes seus como O Céu de Suely e Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo tratavam de inconformidade, de uma procura cujo fim estava não em pertencer a um lugar, mas no próprio ato de se deslocar. Com O Abismo Prateado, Aïnouz retoma elementos da sua série de TV Alice - a descoberta da metrópole como um lugar para perder-se em si - e tenta achar uma razão não no exílio, mas na permanência.
O filme, que se inspira em "Olhos nos Olhos" de Chico Buarque, começa com um plano de mar. Um homem, Djalma (Otto Jr.), sai da praia no Rio de Janeiro e caminha de sunga pelas ruas até chegar em casa, onde ele transa com a sua esposa, a dentista Violeta (Alessandra Negrini), e despede-se antes de pegar um voo para Porto Alegre. No meio da tarde, Violeta recebe uma mensagem de voz do marido, dizendo que não vai voltar e que não a ama mais.
Tradicionalmente, de Os Incompreendidos a Abril Despedaçado (um dos exemplares dos filmes de diáspora da Retomada), o oceano simboliza um ponto de fuga. Em O Abismo Prateado é o contrário: o barulho das ondas quebrando parece exercer uma força de oposição, que estreita e espreme o Rio de Janeiro com os morros. Não há fuga possível, senão anulando-se; Djalma parece um alienígena, é o único seminu na rua em meio às pessoas vestidas para o trabalho, quando o Sol nasce, e mesmo em casa sua nudez soa como desapego, como se ele já não estivesse ali.
Enquanto isso, Violeta parece não sentir a vida compartimentada que leva. O Abismo Prateado é um filme que toca no terror da estagnação de forma discreta porque todas as coisas que cercam a personagem nos parecem, à primeira vista, muito naturais, desde beijar o marido pelo vidro do box do banheiro até admirar-se no espelho da academia. Só percebemos o desarranjo dessas pequenas coisas depois, quando Djalma diz de repente que não quer mais aquela vida: o beijo pelo box vira um relacionamento impessoal, o espelho da academia se torna um simulacro de realizações.
Uma vez que Violeta (e o espectador) se abala com a notícia da separação, é como se começassemos a ver tudo ao redor com olhos mudados, e a excelente direção de arte de O Abismo Prateado sabe pôr no caminho da personagem elementos do cotidiano que pontuam o mal estar - desde as formas que encontramos para nos cercear fisicamente (o filho joga basquete sozinho no quintal, a grade com lança na casa tampa a vista da praia, o táxi estaciona diante de uma vitrine com grades, uma menina chora escondida pelo vidro fumê) até espiritualmente (o Brasil do filme é uma terra de placas, sinalizada com limites e diretrizes, "não mexa a cadeira do dentista", "não fume", "preste atenção", "respeite a vida").
A opção pela proporção de tela de 2,35:1 - a mesma janela horizontalizada que em O Som ao Redor ajuda na claustrofobia - dá à direção de arte mais espaço para esses pequenos elementos, enquanto o trabalho de som do filme, cheio de barulhos no extracampo (marretadas, motores, cacofonias) sugerem ao mesmo tempo opressão e dinamismo. É um mundo em transformação esse Rio de Janeiro, afinal, e parece que estamos na China mutante de Jia Zhang-ke quando Violeta atravessa uma construção de edifício e vai parar na Mata Atlântica, com a cabeça sangrando, como se a descoberta de uma floresta em plena cidade - toda urbanidade se faz com palimpsestos - fosse antes de tudo um delírio, ou uma viagem no tempo.
Talvez neste filme de Aïnouz a permanência, portanto, já implique transformações. Violeta vai tateando o mundo aos poucos - ela sugere duas vezes que outros personagens tomem sorvete, por exemplo, antes de ela mesma se render a esse pequeno prazer - e quando enxerga a si mesma no outro (a relação que o filme faz entre Violeta e o personagem de Thiago Martins, também em flerte com a fuga) essa percepção se aguça.
É raro ver um jogo de duplos como esse, num cinema nacional que se acostumou a priorizar jornadas individuais. Aqui, porém, é essa duplicidade, a capacidade de entender no outro seus próprios dilemas, que puxa Violeta do abismo que é o horizonte de luzes de lantejoula dos carros e dos postes na rua. Ao longo do filme, Alessandra Negrini sempre foi enquadrada em close-up e os entornos ficavam frequentemente fora de foco. À medida em que o final se aproxima e a relação de duplos se firma, a câmera se afasta um pouco, recontextualiza Violeta, dá um espaço para ela respirar. Há um conforto possível, afinal, no mundo de coisas provisórias e impostas: o conforto da coletividade.
O Abismo Prateado | Cinemas e horários
Ano: 2012
País: Brasil
Classificação: 18 anos
Duração: 83 min
Direção: Karim Aïnouz
Roteiro: Beatriz Bracher
Elenco: Camila Amado, Luisa Arraes, Milton Gonçalves, Sérgio Guizé, Thiago Martins, Alessandra Negrini, Otto Jr.