O Sol (Solntse, 2005), novo trabalho do cineasta russo Aleksandr Sokurov, lembra um filme que ainda está fresco na memória dos cinéfilos, A Queda. Sai a história das últimas horas de Adolf Hitler e entra em cena o imperador japonês Michinomiya Hiroito (1901-1989) nos estertores da Segunda Guerra Mundial.
Em comum, os dois filmes acompanham o momento em que dois artífices do Eixo, aturdidos, percebem a derrota até então impensável. A rotina repetitiva do esconderijo subterrâneo, entre os corredores cinzas dos bunkers, ouvindo bombas e aviões lá fora, dá mesmo muito tempo para refletir. O Führer se matou ao fim da guerra. Em O Sol Sokurov mostra o processo que levou Hiroito a se render sem precisar abrir mão do trono do Japão.
o sol
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Processo esse que começa com as maiores cerimônias. Tido como descendente da Deusa do Sol, o imperador, deidade encarnada na Terra, se cerca de servos que suam para abotoar a infinidade de botões de sua roupa. Em seu estilo habitualmente seco, quase sádico, Sokurov ilumina parcamente a cena, reforça os barulhos do lado de fora e acompanha os pequenos rituais com close-ups frequentes, como se forçasse o espectador a se impacientar com a liturgia.
Dessa liturgia divina Hiroito faz brincadeira: "Como pode o meu corpo ser igual ao seu se eu sou um deus encarnado?", questiona rindo a um dos seus auxiliares. Por mais que o rosto do impactante ator Issei Ogata demonstre incômodo, cheio de tiques nervosos com a boca, o imperador parece à vontade com os ritos - como se não estivesse mesmo uma guerra em curso. A certa altura do filme, Hiroito confessa sua alienação: diz nunca ter conhecido Hitler pessoalmente.
Algo didático, Sokurov enche a mise-en-scène de elementos que pontuam essa alienação. Hiroito tem sobre a mesa um busto de Abraham Lincoln ao lado de Charles Darwin e Napoleão. Gravuras, álbuns de fotos, biblioteca sobre biologia marinha... Acompanhamos em O Sol uma personalidade muito mais afeita às artes e seus hobbies do que ao exercício do poder propriamente dito. E é quando essa personalidade é chamada a decidir que o filme fica interessante.
De sua experiência retratando um dia na vida de Lênin (Taurus, de 2001) e de Hitler (Moloch, de 1999), Aleksandr Sokurov aperfeiçoou a difícil tarefa de sintetizar em poucos atos a personalidade de tipos políticos complexos do século 20. O Hiroito que ele pinta - não sem a formidável ajuda de Issei Ogata - é um símbolo diminuto e desajeitado do acomodado homem moderno que renunciou ao seu papel de ser político. A alienação se tornou uma escolha fácil, e sobre a sociedade em crepúsculo paira uma névoa encobrindo a luz do sol.