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Obscurinho do cinema

Obscurinho do cinema

26.07.2004, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H16

Jodorowsky

Duna

El Topo

Poucas coisas são tão prazerosas quanto descobrir um bom filme. Às vezes é graças a uma indicação, em outras, é uma fita que você viu por acaso, ou sem saber muito a respeito. Minha proposta nessa coluna é falar sobre os filmes que eu fui descobrindo pelos anos e que, em tempos de Google, ficaram muito mais fáceis de serem encontrados. A intenção é variar bastante de mês em mês, com obras velhas e novas e de vários países mundo afora. Alguns deles podem ser encontrados em boas locadoras, outros passam de vez em quando na TV e há ainda os que precisam ser comprados no eBay ou, como ouvi dizer, discretamente baixados na Internet.

O filme de abertura se encaixa nas duas últimas categorias. El Topo (México, 1971), escrito e dirigido pelo chileno Alejandro Jodorowsky, é uma espécie de faroeste espiritual com toques de comédia, drama e surrealismo. O longa conta a história de um pistoleiro (vivido pelo próprio diretor), que depois de abandonar o filho em uma vila, segue para matar quatro mestres que moram no deserto. Jodorowsky mistura Sergio Leone, pai do bangue-bangue italiano, com religião, filosofia, política e muita abstração psicodélica. Apesar disso, o filme é perfeitamente agradável para ateus e sóbrios, e não precisa nem ser levado muito a sério para ser apreciado.

Quando foi lançado, no início da década de 1970, El Topo tornou-se uma espécie de clássico instantâneo, destes que dividem as platéias e passam meses em cartaz. George Harrison, o falecido guitarrista dos Beatles, ficou tão impressionado quando assistiu que resolveu bancar parte do próximo filme de Jodorowsky, A montanha sagrada (The holy mountain - 1973). Infelizmente, o produtor que hoje detém os direitos destes filmes é inimigo mortal do diretor e, não satisfeito em proibir suas exibições em festivais e mostras, queimou todos negativos originais. Desde o momento em que terminou de filmar A Montanha, depois do enorme sucesso de El Topo, Jodorowsky foi sistematicamente boicotado até quase parar de dirigir.

Seu projeto mais ambicioso para o cinema foi Duna, épico baseado no livro de Frank Herbert, que nunca chegou a sair do papel. Era um filme megalomaníaco, programado para durar 16 horas e que teria Salvador Dalí no papel de Imperador do Universo. Os cenários e os personagens seriam trabalhados pelo francês Moebius, e a arte conceitual para as criaturas do deserto ficaria a cargo de H.R. Giger, que depois criou o Alien para Ridley Scott. Jodorowsky queria a banda Pink Floyd na produção da trilha sonora e teria até convencido o cineasta Orson Welles a fazer uma aparição. Os produtores americanos tiraram o dinheiro por considerá-lo, por assim dizer, ambicioso demais, e o Duna do chileno morreu na praia.

Faroeste espiritual, existencialista e psicodélico

Para fazer El Topo, Jodorowsky misturou o clima e a violência dos filmes do já citado Leone com os de Sam Peckinpah e John Ford, e ainda o estilo de cineastas como Luis Buñuel e Federico Fellini. O resultado visual é impressionante. O deserto livre de todas as referências políticas, que o diretor desconhecia ao assistir faroestes na infância, é uma Terra Desolada, perfeita para o tipo de "viagem interior" que o protagonista do filme vai viver. Massimo Monteleone, um crítico italiano enfadonho que dá uma entrevista para a versão em DVD, garante que o brasileiro Glauber Rocha também é uma influência para El Topo. Se pensarmos em filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) a afirmação é, no mínimo, coerente. E a referência é múltipla, já que Glauber gostava de Leone, e vice-versa.

No quesito religioso, El Topo é um prato cheio para discussões. Apesar de ser praticamente estruturado sobre a bíblia, o filme também traça paralelos interessantes entre a filosofia e outras religiões, como o budismo. Conforme vai confrontando os mestres do deserto, o pistoleiro vai se deparando cada vez com menos resistência e, paralelamente, vai tendo cada vez mais dificuldades para eliminar os adversários. A metáfora, que foi tomada apenas como discurso pacifista pela geração hippie, está na verdade carregada de ensinamentos budistas e críticas ao capitalismo. Por causa desta quantidade de referências, El Topo pode ser interpretado de centenas de maneiras, e cada escola de pensamento - marxista, freudiana, budista, filosófica, sociológica - vai ter a sua visão do filme.

Para o espectador casual, que quer apenas ver um filme, e não digerir um elefante místico-filosófico, garanto: El Topo vale a pena o esforço que é encontrá-lo e a disposição para se deixar levar por seqüências que, aqui e ali, não fazem muito sentido. Sua história é interessante, os desenvolvimentos da trama são inusitados e há alguns momentos muito engraçados. Na segunda parte, o filme dá uma guinada e muda de tom, mas vai revelando que tem uma estrutura cuidadosa e não é apenas fruto dos devaneios de um chileno que foi ao deserto e comeu peiote demais.

Dos filmes aos quadrinhos

Apesar de ter comandado seis filmes, e da continuação de El Topo estar em pré-produção há anos, é difícil que Jodorowsky volte a dirigir. Seus projetos encontram enormes dificuldades em arrumar financiamento e os roteiros costumam ser ambiciosos demais. A solução que ele encontrou foi enveredar, graças ao seu amigo Jean "Moebius" Giraud, para os quadrinhos. Lá ele encontrou espaço para histórias que não precisavam estar calcadas nos limites da produção de um filme. Aproveitando o roteiro e os desenhos para Duna, criou com Moebius no início da década de 80 a saga O Incal, que fez dele um dos nomes mais importantes dos quadrinhos independentes. O Incal conta a história de John Difool, um detetive particular de classe R que se envolve em uma trama pelo controle do universo.

Um dos personagens de O Incal deu origem à sua melhor criação nos quadrinhos: A Saga dos Metabarões. Em uma história que se estende por centenas de anos, Jodorowsky narra a lenda de uma mitológica casta de guerreiros. O curioso é que nos quadrinhos as referências religiosas, apesar de ainda presentes, dão mais lugar à literatura fantástica de Gabriel Garcia Márquez e Jorge Luis Borges. Jodorowsky continua escrevendo quadrinhos, que são publicados na coletânea trimestral Metal Hurlant. Ele também escreveu alguns livros, e o excelente Quando Teresa brigou com Deus encontra-se publicado e disponível no Brasil, pela Editora Planeta. Nas horas vagas, é tarólogo e músico, tendo composto boa parte da trilha sonora de El Topo. É um artista interessante, que foi boicotado a vida inteira mas que permaneceu sempre original. Quando perguntado sobre a versão de David Lynch para Duna, respondeu: "Sofri muito antes de ver o filme, achei que ia morrer, mas quando assisti fiquei bem feliz, pois é uma merda".

A coluna fica por aqui, mês que vem tem mais. Comentários, sugestões e críticas são sempre bem-vindos.

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