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Quadrinhofilia: <i>Matrix</i> - Nada mais que um gibi de heróis.

Quadrinhofilia: <i>Matrix</i> - Nada mais que um gibi de heróis.

13.06.2003, às 00H00.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H42


Batman & Robin

Batman - de Tim Burton

Estrada para Perdição

Esboço de Darrow para Matrix

Trinity - heroína de colante

X-Men: Dias de um futuro esquecido

Neo - mistura de Peter Parker com Justiceiro e Super-Homem

Veja só como as coisas evoluem. Em 1997, a onda de filmes adaptando personagens de HQs parecia ter encontrado um fim precoce nas mãos de Joel Schumacher e seu Batman & Robin, o paradigma absoluto de como não se deve transpor elementos de uma linguagem para outra. O que acontecia, até então, era que, apesar das HQs renderem munição para superproduções e boas bilheterias desde 1989 com Batman - o filme, as pessoas por trás dessas películas não sabiam (ou pareciam não saber) nada de quadrinhos. Salvo algumas exceções, a regra era dar uma visão pessoal sobre as personagens. Eram tempos para o Batman de Tim Burton e não para o Batman dos gibis.

Hoje, as coisas parecem ter evoluído para melhor. Blade, Homem-Aranha e X-Men, até o momento, lideram a nova tendência: levar a fonte à sério. O resultado? Crítica e público agradecem. O cinema e principalmente os quadrinhos se fortalecem.

Atualmente, não parece mais ser vergonhoso alegar que um filme teve como inspiração uma HQ. Filmes como Mundo cão (Ghost World) ou Estrada Para Perdição (Road to Perdition) são mostras da fonte inesgotável que são os bons e velhos gibis. Além das adaptações propriamente ditas, as citações e influências fizeram-se presentes em vários filmes nos últimos anos. Realmente, quadrinhos nunca estiveram com a bola tão cheia.

Matrix teve um papel fundamental nessa retomada e - por que não dizer? - revalorização das HQs como rica fonte inspiradora. Para começo de conversa, seus diretores eram roteiristas egressos dos comics e a trilogia nasceu como uma idéia de história em quadrinhos. Não só gostam de gibis, como entendem sua linguagem e tentaram traduzir seu imaginário para a realidade das telas.

O alucinado Geoff Darrow, desenhista da HQ Hard boilled (escrita por Frank Miller), somou à equipe seu traço na forma de cenários e máquinas, dando credibilidade e força a um mundo absurdo típico de gibi. Os irmãos Wachowski admitiram, num dos documentários em DVD sobre o seu filme, que as tão badaladas cenas congeladas (ou em câmera lenta) são uma tentativa de aproximar o efeito dos enquadramentos típicos de HQ, capazes de captar num único quadro uma enorme gama de informações que ocorrem em paralelo.

Para muitos, pode ser duro admitir, mas, por baixo de toda a sua roupagem filosófica, metafórica e coisa que o valha, Matrix não passa de um gibi de super-heróis feito por dois moleques a fim de se divertir. Sério! Por melhor que seja, Matrix não deixa de se render ao mais básico da cultura pop americana: o herói de colante. Ou vai me dizer que a malha de Trinity não é isso? Que o sobretudo de Neo não é um substituto da capa e que os óculos escuros não são uma alternativa à máscara? A sobriedade do figurino não esconde o fato de que as personagens se vestem de maneira ímpar. A única diferença é que não ostentam o apelo cafona dos trajes coloridos.

Cool é se desplugar numa atitude acima do restante. Os heróis das HQs fazem isso com seus trajes espalhafatosos, demonstrando que não pertencem ao mesmo patamar (inclusive estético) que nos reserva nossa insignificância. Os protagonistas de Matrix fazem o mesmo. Caso contrário, não usariam codinomes (ou identidades secretas) como Neo, Morpheus, Cypher...

Não é à toa que muitos filmes de heróis carregam na irrealidade dos cenários para não deixar deslocado o protagonista em seu destemido colante colorido. Essas películas padecem de um problema sério: como garantir credibilidade?

É difícil engolir um marmanjo fantasiado dando saltos de dez metros ou voando. Matrix tem a desculpa perfeita: a trama se passa em outra realidade, cujas leis naturais podem ser manipuladas e desrespeitadas; desculpa perfeita para Trinity andar pelas paredes como faria uma Mulher-Aranha. Assim, ninguém estranha o fato.

Os heróis da tela atuam tal qual um supergrupo básico dos comics. De certa forma, poderiam até ser os X-Men. Como todo leitor sabe, os mutantes da editora Marvel Comics costumam testar suas habilidades num ambiente virtual programável chamado Sala de Perigo; exatamente como os rebeldes de Matrix o fazem. Ou você achava que o conceito era coisa nova? Até Jornada nas estrelas tem o seu Holodeck calcado no dos X-men ( infelizmente ausente nos filmes destes).

Quando adentram a Matrix, nossos heróis nada fazem além de viajar para uma realidade paralela, tema mais do que batido nos gibis há décadas. São incontáveis as HQs em que heróis e supergrupos viajam para um mundo paralelo a fim de combater um mal que ameaça sua própria realidade. Citando novamente os X-Men, um dos pontos cruciais de suas aventuras foi a saga Dias de um futuro esquecido, num futuro alternativo (uma das tais realidades paralelas), onde as máquinas (os robôs Sentinelas) dominaram o mundo no século XXI. A premissa é a mesma não só em Matrix como em O exterminador do futuro, cujo roteiro tem ainda mais influência dessa HQ do que o diretor James Cameron gostaria de admitir.

E o que dizer da origem de Neo?

Nove entre dez heróis são nerds como ele (e os leitores, claro). Peter Parker (Homem-Aranha), Reed Richards (Sr. Fantástico), Bruce Banner (Hulk) são exemplos de pessoas com dificuldades de socialização, imersas em seus trabalhos e que, por um meio tecnológico ou outro, adquiriram superpoderes.

Neo vivia recluso em casa, diante de seu computador e não se enquadrava no trabalho assim como Peter Parker não se integrava no colégio. No fim, ambos tocam a mesma melodia: foram feitos sob medida para a identificação do público. Claro que há diferenças cruciais. Em Matrix, as personagens não são o modelo clássico de heróis. Estão mais para as versões pós-modernas do gênero: os tais anti-heróis. Neo & Cia não hesitam em chacinar seus oponentes com suas armas de fogo; uma atitude questionável digna do Justiceiro. A propósito, eis aí outro habitante das HQs que costuma circular por aí vestido de preto e com o sobretudo lotado de armas, dizimando capangas sem se perguntar se são pais de família. Quando Neo e Trinity invadem o prédio em que Morpheus se encontra aprisionado é o espírito sanguinário de Frank Castle que comanda a cena. Garth Ennis, o atual roteirista dele certamente ficaria orgulhoso.

Na verdade, quanto mais procurarmos referências em Matrix, mais possibilidades encontraremos. Todavia, deixando os papos-cabeça de lado, é bom não esquecer que o filme nada mais é do um bom apanhado do imaginário pop, ou seja, é diversão mesmo; um típico gibi, repleto de deliciosos clichês. Vai me dizer que Neo ressuscitando num beijo não é um clichezaço? E o que dizer das piruetas que crescemos lendo nos quadrinho ou do o vôo final do herói? Mas não me olhe assim. Dizer que tudo que Matrix apresentou não tem muito de novo está longe de ser um demérito. Trata-se da coroação da influência dos quadrinhos no imaginário do século XX. Junto de Corpo fechado, outro filme inspirado no imaginário dos super-heróis, Matrix conseguiu o que só agora os filmes baseados em personagens criados nas HQs começam a fazer: tratar a fonte com respeito.

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