Alardeada como uma das maiores histórias em quadrinhos já criadas, Watchmen tem como ponto central a iminência de uma guerra nuclear em larga escala entre os Estados Unidos e a União Soviética. Uma obra dessa magnitude tem fãs ardorosos - entre os quais me incluo - e esses viveram sua própria crise atômica com a ameaça de uma adaptação ruim para o cinema da obra. Durante mais de vinte anos a ideia de um filme de Watchmen pairou como um Enola Gay conceitual sobre o universo nerd.
Nesse período, produtores quiseram adequar as ideias da graphic novel a fórmulas de fácil apelo junto ao público. Felizmente, não conseguiram e o projeto acabou de volta à Warner Bros., onde, enfim, foi tratado com a fidelidade que seus admiradores exigiam por Zack Snyder, que já havia convencido em duas ocasiões como porta-voz do trabalho alheio: em Madrugada dos Mortos e 300.
Watchmen
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O cineasta fez o que muitos consideravam impossível - não apenas transformou a brilhante história de Alan Moore e os traços clássicos de Dave Gibbons em um filme, mas manteve intactas suas ideias. Watchmen, afinal, é muito mais do que um gibi de super-heróis, é um universo de discussões sociais, morais, artísticas, bélicas, governamentais... humanas. A cada passo do projeto Snyder jamais esqueceu disso e aos poucos convenceu todos ao seu redor da importância desses temas para o universo que aquelas estranhas pessoas de colante (ou sem) habitam. É o tipo de filme que não se compromete filosoficamente, ainda que realizado dentro de um grande estúdio, como se fazia na década de 1970. Algo que se não existisse seria impossível conceber no cinemão comercial de hoje em que filmes que ousam um pouco mais têm suas páginas deixadas no chão das salas de roteiristas especializados em "polir" textos..
Mais do que coragem, Snyder e os roteiristas David
Hayter e
Alex Tse têm uma crença inabalável
na audiência. Têm fé que ela acompanhará a intricada
história que condensa e alterna passado e presente, bombardeando o público
com informações, sub-tramas, origens e imagens que só farão
sentido total no último frame. O filme ousa ao ser assim e aposta
altíssimo ao exigir nível de quem está do outro lado da
tela. Entre no cinema com a inercial atitude passiva das projeções
de fim de semana e você corre o risco de sair antes do final do primeiro
ato.
Um novo cult
Como a própria graphic novel, Watchmen - O Filme não é uma experiência para ser digerida de uma única vez. É o tipo de obra que exige amadurecimento e análise. Correndo o risco de parecer um vidente charlatão, acredito que estamos diante do Blade Runner de nosso tempo, um filme que será duramente criticado enquanto durar nas telas, mas que será reverenciado futuramente, quando a poeira assentar e o processamento das ideias ali contidas for esmiuçado em livros e artigos.
Diferente da iluminada reinterpretação de Ridley Scott para o fraco romance de Philip K. Dick, porém, o filme de Watchmen é absurdamente fiel à obra original, ainda que tenha suas próprias e inspiradas alterações. São atalhos criados para eliminar algumas tramas paralelas e dar mais relevância a determinados personagens, tudo perfeitamente integrado à história geral. Também o final tem um novo gatilho, mas mantém sua integridade ideológica. Perdem-se alguns belos detalhes (que espero que sejam inseridos na versão do diretor, que terá uma hora a mais de duração), mas o resultado é perfeitamente amarrado.
Visualmente, a Sétima arte também imita a Nona. Snyder recria cenários e figurinos com fidelidade quase obsessiva. Certos elementos, como o Dr. Manhattan, tornam-se ainda mais impactantes e belos. Enquanto o humano tornado deus nas histórias em quadrinhos é um Homem Vitruviano azul, no cinema ele é um universo à parte. Sob a superfície de sua pele giram galáxias, ainda que o reconhecimento de movimentos empregado na criação da entidade mantenha cada nuance do rosto de Billy Crudup. A produção é riquíssima mas jamais perde o foco, sobrepondo-se à história. Narrativa e visual andam juntas, como deveria ser, e no fogo cruzado há um excelente elenco de atores e atrizes que desaparecem em seus personagens, como Jackie Earle Haley (o enigmático Rorschach), Patrick Wilson (o herói em crise de meia-idade Coruja), Jeffrey Dean Morgan (o amoral Comediante), Malin Akerman (a sexy Espectral), Matthew Goode (o metódico e fashion Ozymandias) e Carla Gugino (a primeira Espectral).
Em termos de estilo, Snyder não exagera. Suas marcas como cineasta - a câmera lenta que acelera subitamente, por exemplo - ficam restritas às parcas cenas de ação. O diretor, afinal, não adicionou nenhum momento mais empolgante que não existisse previamente na graphic novel. Mas também não perdeu a oportunidade de torná-los mais violentos e intensos. Afinal, quando a HQ saiu, em meados de 1980, os atos cometidos pelos heróis chocavam. Hoje em dia, quando temos Wolverine matando centenas nas telonas, Jack Bauer torturando em nome da segurança nacional ou mesmo o outrora divertido James Bond assassinando oponentes com as mãos nuas, o exagero era necessário - ou o filme não teria o mesmo impacto junto ao público. Pelas mesmas razões - a identificação de referências - aparecem mamilos no uniforme de Ozymandias, por exemplo.
Mas não direi aqui que é um filme irretocável. Apesar
das 2h36 minutos de duração, há ausências importantes
na versão dos cinemas. Todas as tramas do cidadão comum, como
os dois "Bernies", fazem falta. Sem elas há um certo vazio
emocional - chega o clímax e a perda é distante. Não há
a menininha de vestido vermelho de Spielberg (A
Lista de Schindler, lembra?) para que nos relacionemos com a catástrofe.
Novamente, isso deve ser melhorado na versão do diretor, mas até lá temos aqui uma falha. Há outras, como a resolução apressada
da paternidade de Laurie, mas nada que prejudique o quadro geral e a constatação
derradeira: Watchmen agora existe também nos cinemas.
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