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Marcelo Milici | Pedofilia, lesbianismo e anticatolicismo em A Maldição de Lemora

"Não adianta trancar as portas e janelas...Nada detém o demônio!"

18.09.2015, às 13H00.

Devido à popularidade da obra, muitos atribuem ao romance Drácula, de Bram Stoker, de 1897, o título de precursor das histórias de vampiros. No entanto, vinte e cinco anos antes de sua publicação, Carmilla, de Sheridan Le Fanu, publicado em 1872, já usava seus artifícios de sedução vampírica para se aproximar da bela Laura e sugar sua vitalidade, enquanto em 1819, O Vampiro, de John Polidori, nas ações do Lord Ruthven, já incomodava o jovem Aubrey. Nessa relação sanguínea, também pode-se incluir as influências da terrível e real condessa húngara Erzsébet Báthory (1560-1614), apelidada de "Condessa Sangrenta" ou até, posteriormente, "Condessa Drácula" por conta de seu costume, apontado como mítico, de se banhar com o sangue de suas jovens vítimas. O que há em comum entre Carmilla e Bathory, além do gosto pela sangria, é a tendência ao lesbianismo, que avançaria pelos séculos, inspirando outras vampiras como a "prima pobre" Lemora, de Richard Blackburn, surgida na década de 70.

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Lançada em VHS pela FJLucas Vídeo, a capa simples trazia o título sonoro A Maldição de Lemora e a tagline "Não adianta trancar as portas e janelas...Nada detém o demônio", bem diferente da original "The Light in the Window ... The Lock on the Door ... The Sounds in the Night! A Possession is Taking Place!" (A luz na janela...a tranca da porta...Os Sons da Noite! A Possessão está acontecendo). A arte do VHS trazia a personagem título em forma de desenho com uma das mãos sobre o ombro da inocente Lila Lee, enquanto a contracapa apresentava a sinopse e uma imagem que não existem na produção.

No Brasil, a fita não fez tanto sucesso pela distribuição simples, embora fosse fácil encontrá-las nas locadoras de bairro. Porém, lá fora, o longa adquiriria uma fama maldita pelo conteúdo considerado ofensivo pela Igreja Católica e sua Legião Católica de Decência, uma organização fundada em 1933 com o objetivo ridículo de "purificar a indústria de cinema". Os apontamentos como um filme anticatólico se devem a algumas insinuações pedófilas no roteiro de Blackburn, em parceria de Robert Fern, além do diálogo mais conhecido da produção:

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Lemora: Amanhã, depois da cerimônia, nós nos tornaremos irmãs de sangue...e todo meu poder...toda a minha beleza...toda minha vida será compartilhada com você.
Lila Lee: Que tipo de cerimônia? Na igreja?
Lemora: Sim.
Lila Lee: Batista?
Lemora: Oh, não. Muito mais antiga que essa. A igreja da qual todas as outras vieram. Uma cerimônia tão antiga que ninguém sabe quando começou.

Como sempre acontece, a censura fez com quem um filme obscuro se tornasse cult, com distribuição na França, popular nos anos 90, e com um bom lançamento de DVD, com relatos e biografias nos Estados Unidos. O diretor teria um silêncio de oito anos até assumir a comédia dark Tudo por Dinheiro (Eating Raoul), de 1981, para depois dirigir alguns episódios da série Tales from the Darkside. Apesar de ocupar a cadeira de diretor algumas vezes, Blackburn é mais conhecido pelos artigos publicados no L.A. Weekly e no periódico The Village Voice.

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Já a atriz que interpreta Lemora, Lesley Taplin, encerrou sua carreira nesse longa, tendo optado por exercer inúmeros outros projetos como editora, pesquisadora, escritora, curadora, professora e voluntária em diversas organizações. Apaixonada por viagens, Lesley encontrou seu destino em um acidente automobilístico em 13 de abril de 2009 aos 62 anos. A atriz que faz Lila Lee, Cheryl Smith, fez muito sucesso na década de 70, estrelando filmes como O Fantasma do Paraíso (1974), O Último dos Valentões (1975), A Revanche das Colegiais (1976), O Incrível Homem que Derreteu (1977), Queimando Tudo (1978), além das produções O Parasita e Cliente Morto Não Paga (1982). Teria uma carreira até mais promissora - fez teste até para Taxi Driver - se não tivesse se envolvido com as drogas. Presa duas vezes, Cheryl era viciada em heroína, contraindo hepatite e morrendo em 25 de outubro de 2002.

A trama de A Maldição de Lemora se passa num período conhecido como Proibição, entre 1920 e 1933, quando houve busca e apreensão de bebidas alcoólicas, gerando conflitos com a máfia e a venda ilegal. É nesse período que o gangster Alvin Lee (William Whitton) teria cometido um duplo assassinato e estaria na lista dos mais procurados. Durante a sua fuga, atraído por dois olhares sinistros, ele acaba encontrando nas estradas escuras a assustadora Lemora (Taplin). Ao ser capturado, em seu bolso a vampira encontra um folheto de jornal com informações sobre o "anjo cantante" Lila Lee (Smith), uma bela jovem de treze anos (a atriz tinha dezoito na época), filha do bandido procurado, que vive sob a custódia do Reverendo (o próprio diretor, Blackburn).

Com algumas insinuações sobre uma possível atração do Reverendo pela jovem - e até um possível momento íntimo sutil -, Lila recebe uma carta de Lemora que diz que o pai dela está doente e precisa vê-la, sozinha, sem que ninguém saiba. Ela deixa uma carta ao Reverendo e foge à noite, primeiramente com a carona secreta de um casal de namorados, depois através de um passeio de ônibus. Nesse momento, a personagem aparenta ser a Alice, de Lewis Carroll, numa terra estranha, com pessoas bizarras e interessadas nela. No passeio noturno, nota-se uma homenagem do Blackburn ao livro A Sombra de Innsmouth, de H.P.Lovecraft, na figura do sinistro motorista - um tipo Joe Sargent - e no longo trajeto de ônibus. O veículo cruza florestas escuras e trafega por estradas estreitas e escondidas. Em dado momento, o ônibus é atacado por pessoas estranhas, grunhindo, surgindo de todos os lados entre as árvores secas. Zumbis com a "aparência de Innsmouth", eles são descritos pelo motorista como "aqueles que preferiram ficar na floresta".

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O motorista é atacado e morto pelas criaturas, mas Lila é salva por um vampiro pouco antes de desmaiar. Ela acorda presa num quarto imundo, tendo uma pequena janela como testemunha, e a aparição súbita de uma senhora horrorosa com suas risadas ao estilo vilão de filme de espionagem. Lila consegue fugir e até ouve uma conversa de Lemora com seu pai, quando ela percebe que o vilarejo onde está, chamado curiosamente de Astaroth (nome de um demônio e que também é citado no clássico Uma Filha para o Diabo, de 1976, e também é o nome do belíssimo fanzine editado por Renato Rosatti desde 1995), não tem a pretensão de deixar as pessoas saírem de lá. Além dos zumbis das florestas escuras, o local tem crianças estranhas, com suas unhas grandes e palidez, e um aspecto colonial propício para histórias de horror.

Observando o título original, Lemora: A Child's Tale of the Supernatural, o longa deixa transparecer a ideia de um pesadelo infantil, uma alucinação de uma criança molestada por adultos. Com seu olhar caído e o semblante que não esconde uma inocência diante do desconhecido, Lila conduz o espectador a uma viagem atmosférica pelos meandros da imaginação num universo repleto de monstros. Possivelmente, a intenção de Blackburn era trabalhar com o sobrenatural para apresentar uma mensagem sobre pedofilia e anseios religiosos, vendido num horror tradicional e crítico.

Lemora (talvez uma citação a Edgar Allan Poe, Lenora, aproveitando um anagrama de Morella) mantém uma residência gótica com crianças vampiras, seduzindo garotas ao longo dos séculos. Lila até encontra um diário de uma vítima que teria se negado a viver no lugar -, num misto de pedofilia e lesbianismo. A crítica evidente aos abusos, sem generalizar, é muito bem feita, enquanto carrega uma produção de horror séria e pessimista. O tapa na cara não foi bem aceito pela Igreja Católica, embora a mensagem vá além de uma religião específica.

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A Maldição de Lemora pode não ter feito o sucesso esperado, mas permitiu que a vilã entrasse para a galeria de vampiras do cinema. Sem a mesma sorte de suas "primas" Carmilla e Bathory, Lemora nem precisou de tanta popularidade para se tornar inesquecível.

Marcelo Milici é professor, com especialização em Horror Gótico, idealizador do Boca do Inferno, fã de rock´n roll e paçoca.

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