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Marcelo Milici | Quando a Lápide Cai... Meu Primeiro Filme de Zumbis

“Eu desejo que os mortos realmente voltem à vida, seu bastardo, pois assim eu poderia te matar novamente.” (Arthur Kennedy, em Não Se Deve Profanar o Sono dos Mortos, 1974)

15.08.2015, às 00H00.
Atualizada em 06.11.2016, ÀS 03H04

Em 1968, George A. Romero deu vida a milhares de mortos em Pittsburgh ao conceber o divisor de águas A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead). Era a primeira vez que os zumbis não serviam mais apenas como escravos de algum feiticeiro ou eram vítimas de maldição, mas passariam a se alimentar dos vivos, arrancando as vísceras e devorando os órgãos e músculos num banho de sangue em preto e branco. Apesar dos movimentos lentos e espaçados, o filme rapidamente se tornaria uma das grandes influências do gênero fantástico, espalhando-se pelo mundo em diversas línguas e cores. Entre as produções inspiradas no clássico uma particularmente se destaca como o primeiro filme de zumbis que assisti, intitulado Não se Deve Profanar o Sono dos Mortos, de Jorge Grau, lançado em 1974.

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Não foi com esse título sonoro. Na época da febre dos VHS no Brasil o filme foi lançado como Zumbi 3, de forma picareta pela Poderosa. Primeiro porque Zumbi 3 seria uma forma de torná-lo uma continuação de Zombie - Despertar dos Mortos (Dawn of the Dead, 1978) e Zumbi 2 - A Volta dos Mortos (Zombie, 1979), mesmo tendo sido feito antes dos dois; e segundo porque a distribuidora usou como capa a mesma do longa Roleta Macabra (Graveyard Disturbance), de 1987. E, para piorar, a fotografia era muito escura e a capa continha uma sinopse repleta de erros gramaticais e com uma descrição quase completa do filme. E dessa forma errônea acabei tendo o primeiro acesso ao universo dos zumbis, seguido por Dia dos Mortos (85) e Despertar dos Mortos. O clássico absoluto só fui ver na década de 1990, quando o horror em preto & branco passou a ser um critério particular de escolha de produções do gênero.

Jorge Grau teve a oportunidade de conferir a obra alfa logo após o lançamento e ficou impressionado com a ousadia de George A.Romero, mas o horror não era muito a sua praia, tanto que ele pretendia incursionar no gênero com uma singela produção baseada em Elisabeth Bathory, embora ouvisse falar em demasia no episódio noturno dos mortos: "Eu queria fazer um filme que iria se chamar A Força do Diabo sobre uma mulher que, para manter a juventude eterna, precisava se banhar com o sangue de virgens", conta o diretor numa entrevista entre os extras do box da Versátil. "Entrei em contato com uma produtora espanhola e esta me colocou em contato com uma italiana. Falei com o produtor e ele me perguntou: 'Você gosta de A Noite dos Mortos-Vivos?', 'Bem, sim, gosto muito desse filme.', 'Bom, então você tem de fazer A Força do Diabo como A Noite dos Mortos-Vivos'." Apesar de adorar (e respeitar) o longa de Romero, não havia relação alguma com o que ele pretendia com seu projeto.

A Força do Diabo foi tão bem recebido que, após o lançamento, o mesmo produtor telefonou novamente para Grau e o convidou para um café em Madri, insistindo na pergunta: "Ainda gosta de A Noite dos Mortos-Vivos?" Grau aquiesceu, e ele colocou sobre a mesa um roteiro e disse: "Este é A Noite dos Mortos-Vivos, só que colorido". Segundo o cineasta, o roteiro era bom, mas possuía elementos fantásticos e exagerados, citando como exemplo a máquina usada para trazer os mortos à vida. Grau fez um estudo a respeito e teve a ideia de utilizar um aparato agrícola, muito parecido com o que existem nos campos. Ele acreditava que o tom realista seria muito mais assustador do que desenvolver improbabilidades, afastando os pés dos espectadores do chão.

Não se Deve Profanar o Sono dos Mortos teve estreia na Itália em 28 de novembro de 1974, chegando à América apenas no ano seguinte com o título Don't Open the Window (para fazer parte da série de longas com o imperativo negativo Don't), em exibições duplas com Aniversário Macabro, de Wes Craven. Depois teria um nome ainda mais popular por lá, Let Sleeping Corpses Lie. Foi para o Reino Unido como The Living Dead at the Manchester Morgue - ignorando o fato do filme se passar em South Gate e não Manchester - e também teve lançamento no Brasil como A Revanche dos Mortos-Vivos II. Independente do título, o longa teve boa receptividade, conseguindo críticas positivas que o apontavam como melhor filme de zumbis espanhóis do período. Para quem não sabe, nessa época os mortos de Grau disputaram audiência com a quadrilogia dos zumbis cegos de Amando de Ossorio. Embora goste também do trabalho de Ossorio, Grau estava um patamar acima, principalmente pelo cuidado estético e direção correta.

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O filme começa com o protagonista, George (Ray Lovelock), deixando sua loja de antiguidades para levar uma estátua para Lake District, onde irá se encontrar com alguns amigos. Ao parar num posto de gasolina com sua moto, o veículo da descuidada Edna (Cristina Galbó) acaba por impossibilitar a continuidade de sua viagem, obrigando a garota a ajudá-lo com uma carona. Ela pretende visitar a irmã, Katie West (Jeannine Mestre), com alguns problemas envolvendo o vício em drogas e a relação conturbada com o marido fotógrafo Martin (Jóse Lifante). Perdidos pelo caminho, George pede informações num campo para um grupo de homens do Departamento de Agricultura, que utiliza uma curiosa máquina para matar insetos a partir de radiação ultrassônica.

Nesse meio tempo, enquanto aguarda o retorno de George, Edna é atacada por um zumbi, numa cena que dialoga com a fuga de Barbra, em A Noite dos Mortos-Vivos. Esse mesmo zumbi, interpretado por Fernando Hilbeck, fará sua primeira vítima ao atacar Martin, durante uma sessão de fotos nas proximidades de um rio. Com os olhos vermelhos, os mortos de Jorge Grau tendem a manter as mesmas características de quando estavam vivos, o que explica o corpo molhado do zumbi, consequência de sua morte por afogamento. "Fernando é um grande ator, mas sempre senti que seu físico me causava um certo desconforto", afirma o diretor, "Tem algo na boca dele, como se ela fosse deslocada. É um homem forte, com expressões retilíneas, duras".

Katie também é atacada, mas consegue se safar com a ajuda de George e Edna. Com a chegada da polícia, sob o comando de um inspetor mal-humorado (Arthur Kennedy), a culpa recai sobre o trio, já que os oficiais não acreditam que o mendigo Wilson tenha voltado dos mortos para atacar. Mesmo sem ver o agressor, George rouba o filme da câmera de Martin com a esperança que o assassino tenha sido fotografado, algo que não aconteceu. Ele continua investigando o crime, partindo para o cemitério da região, local em que irá encontrar o zumbi, e terá que enfrentar outros por lá, em momentos sangrentos e violentos, além da sombra do policial e sua crença na culpa de todos os envolvidos.

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Diferente do filme de 68, Não se Deve Profanar o Sono dos Mortos tem uma primeira metade mais lenta, com a investigação dos heróis e a aparição de um único zumbi. Na segunda parte, quando Wilson começa a trazer outros mortos à vida, o terror deslancha com cenas de corpos rasgados a dentadas e órgãos devorados. Entre os episódios mais interessantes há a do abrigo na cripta e a sequência no hospital, envolvendo claustrofobia e ataques violentos, como a da atendente que tem seu peito dilacerado pelas criaturas.

É impossível não se incomodar com as ações do inspetor incrédulo. Grau escolheu Arthur Kennedy porque acreditava que o ator poderia incorporar um profissional amargurado, já que estava ressentido com seu declínio na indústria americana. "O que tentei fazer foi acrescentar em seu papel algumas características pessoais dele. Eu me aproveitei de um certo ressentimento que eu queria ver nele para dar ao papel uma profundidade humana". Grau ainda acrescenta que a interpretação de Kennedy foi tão boa que a partir desse filme ele passou a temer policiais e homens de uniforme.

Outra curiosidade interessante apresentada no belíssimo box da Versátil é o trabalho de sonoplastia. Grau conta um fato pessoal sobre a morte de seu pai e um som emitido após a constatação de sua partida, o que ele imaginava ser o "som da morte". Assim, essa respiração abafada, com um sopro no microfone, produzido pelo próprio diretor com o auxílio do músico Giuliano Sorgini, traz um tom mórbido e pessimista à produção, auxiliados pelas cenas noturnas e pelas boas interpretações. E o último ato também contribui para o espectador encerrar a sessão com uma sensação de desconforto, mas satisfeito pelo conteúdo apresentado.

Daquelas cenas memoráveis que servem de cartão postal de uma produção, eu me recordo do momento em que um zumbi mata um policial, derrubando sobre ele uma pesada lápide. Quando conferi o filme pela primeira vez, nos longínquos anos 80, eu desenhava o episódio sangrento no caderno da escola, fascinado pelos vilões canibais, e imaginava o que teria acontecido de interessante em Zumbi 1 e Zumbi 2. Ao perguntar na locadora, nunca encontrava os primeiros volumes, e criava mentalmente o prelúdio dos acontecimentos. Também cheguei a escrever nos anos 90 uma fanfic, intitulada "Johnny", em que narrava momentos simultâneos ao clássico A Noite dos Mortos-Vivos, contando o que aconteceu com o irmão de Barbra até sua transformação em zumbi.

Juntamente com Não se Deve Profanar o Sono dos Mortos, o box da Versátil Zumbis no Cinema ainda contém o clássico A Noite dos Mortos-Vivos (1968), A Noite do Terror Cego (1972) e A Noite dos Arrepios (1986), todos com ótima qualidade e contendo extras interessantes e legendados, como entrevistas com diretores e cenas alternativas. Vale a aquisição como um passeio por três décadas de mortos vorazes, numa belíssima aula de horror que só o cinema fantástico pode proporcionar! 

Marcelo Milici é professor, com especialização em Horror Gótico, idealizador do Boca do Inferno, fã de rock´n roll e paçoca.

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