Tudo começou realmente em Londres. Bom, na verdade, já existiam vestígios da criatura desde 1913 no curta The Werewolf, de 1913, de Henry MacRae, mas coube ao O Lobisomem de Londres, de 1935, de Stuart Walker, o status de a primeira versão popular, na galeria dos monstros da Universal Pictures. Sem sucesso, o monstro retornaria em 1941, sob a pelugem de Lon Chaney Jr. e a combinação perfeita com os astros Claude Rains e Bela Lugosi. Durante toda a sua trajetória sangrenta, nos quatro filmes da Universal, nas interpretações incríveis de Paul Naschy e produções obscuras pelo mundo, o lobisomem nunca foi tão bem tratado como no clássico absoluto de John Landis, Um Lobisomem Americano em Londres, de 1981. Pode-se apontar como um novo começo, ou, talvez, o divisor de pelugens do subgênero, mesclando horror e humor negro em doses perfeitas e impressionantes.
Landis escreveu o esboço do roteiro em 1969, mesmo ano do lançamento do trash Sangue no Castelo de Drácula, de Al Adamson & Jean Hewitt, que continha um crossover com a criatura. Apesar da ideia estabelecida e aprimorada durante uma viagem de carro, onde ele teria presenciado um curioso enterro cigano e o misticismo que envolvia o funeral com a necessidade de usar alho, o cineasta só conseguiu financiamento para a realização de seu filme, orçado em 10 milhões, quando começou a fazer sucesso com as comédias Schlock (1973 - seu primeiro trabalho, já envolvendo elementos que misturam o humor com o horror), The Kentucky Fried Movie (1977), O Clube dos Cafajestes (1978) e Os Irmãos Cara-de-Pau (1980), apostando muito no elenco jovem e na trilha sonora bem escolhida. De acordo com o próprio Landis, na obra Cult Movies 3, de Danny Peary, os financiadores consideravam seu roteiro "assustador demais para ser uma comédia e muito engraçado para um filme de horror".
Mesmo com o dinheiro em mãos, John Landis ainda tinha que decidir as locações, distantes e absolutamente perfeitas para a produção. As filmagens aconteceram em Black Mountains em Wales, no vilarejo de Crickadarn, Hampstead Heath, Well Walk e Haverstock Hill, em Londres. O governo inglês só permitiu a inclusão de quatro nomes americanos no elenco e equipe técnica, incluindo o próprio diretor, o que o levou a escolher acertadamente o técnico Rick Baker e os atores David Naughton e Griffin Dunne - base fundamental para que o trabalho tivesse a aprovação absoluta. Baker já estava em contato para a realização de outro clássico da licantropia, Grito de Horror (1981), algo que gerou, inclusive, uma briga feia entre os dois nos bastidores até que o artista optou pelo filme de Landis e deixou o outro trabalho sob a tutela de Rob Bottin. Uma das discussões entre os dois envolvia a perfeição nos detalhes do cineasta: na famosa cena da transformação, com o rosto maquiado em apenas sete segundos, levava meses para ser desenvolvida; Landis também queria um lobisomem quadrúpede, enquanto Baker insistia num bípede, como no clássico de 1941. Contudo, os aplausos nas sessões iniciais e o primeiro Oscar do gênero ao técnico abrandaram o relacionamento, embora Landis tenha dito que nunca o perdoaria por todo o processo desgastante. Apesar das rusgas, ambos voltariam a trabalhar no clipe Thriller, de Michael Jackson, um dos grandes fãs do filme!
Um Lobisomem Americano em Londres estreou em 21 de agosto de 1981, tanto nos EUA quanto no Reino Unido, somando na bilheteria inicial uma quantia três vezes maior do que o seu custo. As críticas foram, em massa, positivas, ressaltando a qualidade técnica e o bom humor. Kim Newman, da Empire Magazine, por exemplo, estampou em seu comentário a frase: "Atividades lunares carnivorosas dificilmente terão mais entretenimento do que isto"; enquanto Tom Huddlestone, da Time Out, afirmou: "Não apenas sangrento, mas realmente assustador; não apenas divertido, mas inteligente." No Brasil, o longa chegaria dois anos depois, em 25 de agosto de 1983, com uma imagem com os dizeres "Fantástico...Aterrorizador. O mais elogiado e comentado filme de terror que o cinema já mostrou." Depois viria a versão em VHS da New Line, sendo o primeiro contato que tive com o filme, nessa tecnologia avançada que permitia interromper a exibição para ir ao banheiro – ou, no caso, inventar uma desculpa para sair da sala.
É claro que o longa é conhecido pela cena mais verossímil de transformação de um homem em um lobisomem da história do cinema, mas há uma excelente história por trás, simples e assustadora, digna de figurar nos melhores contos fantásticos! Há ainda uma crítica evidente sobre o modo como são recebidos os estrangeiros, simbolizada metaforicamente na figura da criatura e do jovem David Kessler, interpretado por David Naughton, escolhido por John Landis após vê-lo cantando em um comercial de Dr.Pepper. A imagem do ator cantando rendeu uma brincadeira nos bastidores, com a equipe de filmagem rodeando-o para cantar: "I'm a werewolf, you're a werewolf ... wouldn't you like to be a werewolf, too?"
Ao som de "Blue Moon", na versão de Bobby Vinton, uma paisagem bucólica e estática evidencia a aproximação de um veículo nas estradas desertas e frias de Yorkshire. Na carona estão os americanos David Kessler (Naughton) e Jack Goodman (Griffin Dunne), que resolvem buscar abrigo para a noite que se aproxima no pub "The Slaughtered Lamb" (Cordeiro Massacrado), na Whitby Road, onde existe o verdadeiro e famoso Saltergate Inn. Mal recebidos pelos frequentadores e até mesmo pela atendente - que insiste em dizer que não há nada ali para eles -, a situação torna-se mais hostil quando, num momento de distração do grupo após uma piada, Jack pergunta em voz alta a todos qual a finalidade do desenho da estrela de cinco pontas, com iluminação de velas, algo que o fez referir anteriormente ao clássico O Lobisomem, de 1941, como sendo a "marca do lobisomem". Sem alternativas, a dupla resolve abandonar o local, ouvindo as mesmas palavras proferidas pelo caminhoneiro "Fique na estrada e longe dos pântanos".
A lua azulada não se esconde nas nuvens escuras. Enquanto mantém a conversa bem-humorada, Jack e David são surpreendidos por uma chuva gelada, o que levemente tranquiliza o pessoal do pub por acreditar que talvez a criatura possa se abrigar. Enquanto dialogam animadamente, o espectador já nota a distração dos dois, que se afastam da estrada e só percebem o erro ao ouvir o primeiro uivo. "Você ouviu isso?", "Eu ouvi isso.", "O que foi?", "Pode ser várias coisas.", "Tipo?", "Um coiote.", "Não há coiotes na Inglaterra.", "O Cão dos Baskervilles", "Pecos Bill" (referência ao personagem e seu contato com lobos), "Heathcliff", "Heathcliff não uivava!", "Mas ele esteve nos pântanos." (referência a O Morro dos Ventos Uivantes, onde o personagem Heathcliff sai em busca de Catherine).
Com a intensidade dos uivos, eles decidem retornar ao pub, mas notam que a criatura aparentemente está cercando-os, decidindo o momento certo para atacá-los. O vento forte e a neblina que acompanham os rapazes contribuem para o clima soturno e permitem que o público se sinta realmente amedrontado pelo que esconde nas proximidades. Passos largos, em andadas perdidas, eles tentam adivinhar a identidade do predador: "O que é isso?", "Um cão?", "É muito grande para ser um cão.", "Talvez um cão pastor." David tropeça pelo caminho. Quando Jack resolve ajudá-lo a se levantar, ele é atacado pela fera. Enquanto o amigo é dilacerado pela criatura, David se afasta do amigo, como qualquer pessoa faria numa situação similar. Ao ouvir o pedido de ajuda, o rapaz resolve voltar para ajudá-lo, sendo atacado pelo monstro. Antes que pudesse se tornar apenas restos sangrentos misturados ao lamaçal, o lobisomem é morto pelo pessoal do Pub, sem a necessidade de balas de prata como aponta a tradição.
David acorda três semanas depois num quarto de hospital, em Londres, e descobre a morte do amigo. Questionado pelo Inspetor Villiers (Don McKillop) e pelo Sargento McManus (Paul Kember), ele é avisado que ambos foram atacados por um lunático, de acordo com testemunhas e a autópsia, mesmo a contragosto do rapaz, que insiste que foram vítimas de um grande lobo. Ele então é acometido por pesadelos bizarros, envolvendo uma corrida pela mata - algo que o ator considerou como a pior cena que protagonizou - e a morte de um veado; uma transformação em um monstro com olhos e dentes amarelos; ou o bizarro ataque de uma gangue de nazistas lobisomens a sua casa, armados com metralhadoras e facas, matando toda a sua família até rasgar seu pescoço.
Para piorar o processo de transformação, David recebe a visita de Jack, com o rosto e pescoço rasgados - num ótimo recurso de maquiagem -, que conta que foram atacados por um lobisomem e que ele agora é um morto-vivo condenado a andar pela terra até que a maldição termine com a morte do último lobisomem. "Você deve se matar antes da próxima lua cheia. Ou irá matar também." Nesse processo, David se apaixona pela enfermeira Alex Price (Jenny Agutter), enquanto o seu médico, o Dr. J. S. Hirsch (John Woodvine) decide investigar o pub para saber mais detalhes do que aconteceu. Nada até o momento se compara à chegada da Lua Cheia.
Na residência da enfermeira, David fica agitado, andando de um lado para outro como um animal perdido. A música "Bad Moon Rising", da banda Creedence Clearwater Revival, acompanha o ritmo do rapaz, que abre a geladeira algumas vezes, mas nada ali parece agradar sua voracidade inexplicável. Quando a lua desponta na janela do hospital, no quarto do menino que só diz "não", David começa a sentir como se estivesse sendo queimado vivo, com intensos calor e dor na mesma proporção. Ele rasga suas roupas e grita a cada mudança de sua estrutura óssea, no esticar de sua mão, na alteração da orelha, crescimento dos pelos e na ampliação da coluna vertebral para a composição lupina. Distorcido em dor e desespero, um focinho cresce em sua fronte, e seus olhos amarelos e raivosos se destacam com o uivar que preenche a noite londrina.
Seis pessoas são mortas pela criatura, com maior destaque para a cena de perseguição no metrô. David acorda sem roupas na jaula dos lobos, e precisa encontrar um meio de voltar para casa para tentar entender o que aconteceu. A assombração de Jack surge acompanhada dos outros mortos-vivos, vítimas do lobisomem, que tentarão convencê-lo mais uma vez a se suicidar das formas mais criativas, num cinema, durante um filme pornô. Tudo culminará em mais uma transformação agressiva, com o lobisomem atacando cidadãos, cruzando vias, causando acidentes de carro e mais mortes até o encontro final com a enfermeira Alex.
Além dos momentos irônicos, no contato de David com os mortos, nas brincadeiras com a namorada ou quando ele tenta provocar sua prisão ofendendo a Rainha da Inglaterra, Um Lobisomem Americano em Londres é um belíssimo exemplar do gênero horror. Inspiradíssimo, contando com o talento de Rick Baker na composição gráfica, John Landis traz uma produção sangrenta, com altas doses de violência e gore, que, juntamente com a trilha, compõem um cenário digno das obras mais memoráveis do estilo.
Apesar do sucesso nas bilheterias e na premiação com o Oscar, o elenco não conseguiu mais tanto destaque no cinema. O protagonista David Naughton apareceria em inúmeras séries e filmes para a TV, além de participações em Expresso Macabro (1990), Amityville: A Nova Geração (1993), Trilogia do Terror (1993), Prisioneiros das Trevas (2001), Abelhas - Ataque Mortal (2001) e A Fera Assassina (2006), novamente numa produção de lobisomens. A enfermeira, interpretada por Jenny Agutter, também estaria em filmes de menor expressão e em pontas em Os Vingadores (2012) e Capitão América 2: O Soldado Invernal (2014). Já Griffin Dunne seria o mais bem sucedido entre os principais, estando no ótimo Depois de Horas (1985), de Martin Scorsese, em Amazonas na Lua (1987), no segmento de John Landis, Meu Primeiro Amor (1991) e no premiado Clube de Compras Dallas (2013).
Mesmo não sendo o gênero que o levou ao estrelato, John Landis será eternamente lembrado por esta obra-prima. Depois ele faria um segmento de No Limite da Realidade (1983), as parcerias com Eddie Muprhy nas comédias Trocando as Bolas (1983), Um Príncipe em Nova York (1988) e Um Tira da Pesada 3 (1994), o light Inocente Mordida (1992) e umas produções menores, incluindo sua participação nas antologias Mestres do Terror (dois episódios) e Fear Itself (um episódio). Se em Um Lobisomem Americano em Londres, era estampada a frase "Do Mesmo Diretor de Os Irmãos Cara-de-Pau", o que fez muitas pessoas saírem assustadas do cinema porque pensavam que era uma comédia, a partir de 81, a frase de destaque envolvia o clássico da licantropia.
"Assustador demais para ser uma comédia e muito engraçado para um filme de horror." Foi com a segunda parte dessa sentença que meu pai me convenceu a encarar o lobisomem de Rick Baker. Consegui vê-lo na segunda tentativa, e, assim como David Naughton, fiquei encantado pela lua e fui transformado pelo gênero. Definitivamente foi o filme que estabeleceu minha trajetória com o horror, sempre em busca de criaturas fantásticas, efeitos especiais convincentes e alguns calafrios.
Amaldiçoado como o estrangeiro no pântano das incertezas, sem que horror possibilite o desvio de meu caminho tortuoso, lembro sempre dessa produção toda vez que a lua redonda, revestida em seu brilho, desponta no céu nebuloso, imaginando que, em algum lugar, algum incauto acaba de ser condenado aos dentes afiados de um monstro voraz. E, possivelmente, em Londres, seu habitat natural.
* Marcelo Milici é professor, com especialização em Horror Gótico, idealizador do Boca do Inferno, fã de rock´n roll e paçoca.