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Marcelo Milici | As tendências dos filmes de terror através dos tempos

Como a fantasia reflete todos os aspectos da nossa realidade

26.06.2015, às 18H28.

Que os filmes de terror são uma representação - ou caricatura - de uma época, isso já não é novidade. Enquanto muitos enxergam o gênero como supérfluo, exatamente por acreditar que sua essência se baseia no surreal, os fãs de verdade sabem que existe um contexto por trás das tendências, mesmo as mais sangrentas e assustadoras, como se cada machadada ou susto fosse um reflexo da sociedade do período. Não acredita? Então, observe.

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A história do horror no cinema é construída por ciclos. Pode-se delimitar cada fase pelas décadas, com grande influência na evolução do cinema e dos medos da sociedade. Logo depois que os irmãos Lumière assustaram os primeiros espectadores com a simples "chegada de um trem à estação" - e era realmente aterrorizante imaginar como uma máquina imensa conseguia cruzar vilarejos e encurtar o tempo de viagens -, seria realizado o primeiro filme de terror, The Haunted Castle (1896), de Georges Méliès, com apenas dois minutos (o suficiente para mostrar Mefistófeles e suas assombrações e os temores da virada do milênio).

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Após a Primeira Guerra Mundial, em 1919, na Depressão Alemã, viria o primeiro representante do chamado Expressionismo Alemão, movimento que tocou em todas as vertentes artísticas. O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920) abriria as portas para A Morte Cansada (Der müde Tod, 1921), Nosferatu (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, 1922), O Estudante de Praga (Der Student von Prag, 1926),... até mesmo de outros gêneros - embora a linguagem expressionista, com sua deformação da realidade e filtros, seja por si só aterrorizante. Ainda sob influência do período, a Universal crescia com os seus monstros icônicos e fotografia preto e branco, inspirados na literatura gótica e romântica. Frankenstein e Drácula, na literatura, já eram representantes de um mundo científico no século XIX - o primeiro criado pela ciência; o segundo, destruído por ela, com a experiência do Doutor Abraham Van Helsing. A Universal apresentava sua galeria de monstros silenciosos, muitos ambientados no século anterior, enquanto sofria com a crise de 1929. A realidade era assustadora demais para ser retratada na Sétima Arte, e o cinema se transformava no refúgio de um período financeiro conturbado. Também se tornava viável transferir o habitat das criaturas para cidades inglesas, como Londres, local ideal e distante para a aparição de lobisomens e outros monstros.

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Na década de 40, a Segunda Guerra Mundial devastava as expectativas de um futuro tranquilo, e alterava o papel da mulher na sociedade. Antes disso, elas tinham pouco a dizer e eram estereotipadas a não arrumar empregos ou sair, apenas fazer bebês, ser uma boa dona de casa e, principalmente, uma boa esposa. No início dos anos 40, lentamente essa visão distorcida começou a perder força, pois os homens precisaram ir para a Guerra e elas passaram a substituir suas funções. Nos Estados Unidos, por exemplo, as batalhas tornaram-se tão intensas que as próprias mulheres criaram organizações para contribuir no apoio aos soldados e à causa: assim, em 1942, foram estabelecidos The Women's Army Corps (WAC) e Women Accepted for Volunteer Emergency Services (WAVES), ampliando ainda mais a importância das companheiras. Elas logo seriam aceitas pelo congresso a servir a marinha americana, enquanto as demais trabalhavam em fábricas, entre outros trabalhos necessários para a manutenção da nação e até mesmo do entretenimento. Em 1943, foi fundada a The All-American Girls Professional Baseball League; em 1945, Eleanor Roosevelt integrou a recém-criada Organização das Nações Unidas. Assim, através da década, elas tiveram uma grande evolução na sociedade, não apenas americana, mas mundial.

Foi também nessa mesma década que Bette Davis havia interpretado uma das vilãs mais sórdidas da história do cinema. Pérfida (The Little Foxes, 1941), de William Wyler, traz Davis como Regina Giddens, uma mulher inescrupulosa, capaz de ações maléficas para conseguir riquezas e independência, como na famosa cena em que ela não ajuda o marido durante um ataque cardíaco já pensando na possibilidade de se tornar uma viúva rica - uma performance que lhe renderia uma nova indicação ao Oscar. Em Pacto de Sangue (Double Indemnity, 1944), de Billy Wilder, seria a vez de Phyllis Dietrichson (na interpretação de Barbara Stanwyck) usar seu poder de sedução para convencer o vendedor de seguros Walter Neff (Fred MacMurray) a assassinar seu marido, fazendo parecer um acidente para que ela pudesse ganhar o dinheiro do seguro de vida, pago sem o consentimento dele. Stanwyck também recebeu uma indicação ao Oscar como melhor atriz, mas perdeu para Ingrid Bergman e seu espetacular À Meia Luz (Gaslight, 1944).

Com o fim da Segunda Guerra, monstros gigantes começaram a emergir por todos lados. Eram frutos de uma herança (ou uma "resposta") do uso inconsequente das armas nucleares como as bombas de urânio e plutônio lançadas pelos americanos no final da Segunda Guerra Mundial sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki e também as ameaças de possíveis novos ataques durante os conflitos indiretos entre Estados Unidos e União Soviética na Guerra Fria. Esse temor sobre o fim do mundo num confronto bélico nuclear refletia nos cinemas com uma série de produções envolvendo invasões alienígenas e monstros gigantes ou os kaiju, das tradições japonesas. Godzilla foi o maior representante desse medo, surgindo inicialmente como vilão, para depois confrontar outras criaturas, com moralismo e fantasia exacerbadas.

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Com a diminuição na produção da Universal, surgiam outros estúdios como a até então desconhecida Hammer, que passava a reinventar os monstros clássicos, na década de 50. Abusando das cores, e também do erotismo (mais uma vez a mulher era o destaque), despontavam para o sucesso lendas como Peter Cushing e o recém-falecido Christopher Lee, representações maniqueístas do herói gentleman e seu contraponto cruel e sanguinário. As cores permitiam manchar de vermelho o Banquete de Sangue (Blood Feast, 1963), de Herschell Gordon Lewis, mas escondiam as sombras instigantes que George Romero soube explorar com o divisor do subgênero zumbis, A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead), de 1968.

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Criaturas que se alimentam de carne humana, tendo a frente um herói negro (no mesmo período do assassinato de Martin Luther King Jr., o líder do movimento dos direitos civis dos negros)! Dá para se ter uma ideia do quanto a produção sofreu na época ao trazer a morte de Ben, confundido com um zumbi, com o comentário de seu assassino: "Mais um para a fogueira". De toda forma, o andar trôpego dos mortos-vivos seria momentaneamente abafado com o fim dos anos 60 e início dos 70, época em que os jovens desorientados buscavam liberdade em grupos religiosos e em viagens alucinógenas. A morte violenta de Sharon Tate, grávida, mulher de Roman Polanski, marcava a época e inspirava produções cruéis do período. Aniversário Macabro (The Last House on the Left, 1972), Amargo Pesadelo (Deliverance, 1972), O Massacre da Serra Elétrica (The Texas Chainsaw Massacre, 1972), Snuff (1976), Quadrilha de Sádicos (The Hills Have Eyes, 1977)... quanto mais sádico e visceral mais curioso seria. Também merecem menções Calafrios (Shivers, 1975) e Invasores de Corpos (Invasion of the Body Snatchers, 1978), exemplares que antecipavam e metaforizavam a AIDS.

No início da década de 80, durante o ciclo de produções italianas sobre canibais e longas picaretas (lê-se continuações bastardas), os americanos começavam a buscar meios de resgatar os valores da família. Assim, vieram muitas produções que intensificavam a união familiar, e tentavam rir do horror com o "terrir" da chamada "espantomania". Foi também o período em que floresceu o slasher - o assassino que quase sempre era vencido pela mulher (scream queens) - e surgiram os ícones contemporâneos: Michael Myers (no final da década de 70), Jason Voorhees, Freddy Krueger, Chucky, Pinhead... - cada um como caricatura dos assassinatos violentos da década anterior.

Além de satirizar o gênero, os anos 80 também são lembrados pelo avanço dos efeitos especiais no cinema. Técnicas avançadas de animatronics, com monstros tangíveis, substituíam o stop motion e traziam realidade para os filmes de terror. Assim, era impossível não se impressionar com os trabalhos desenvolvidos na trilogia inicial da franquia Alien, com as aberrações de O Enigma de Outro Mundo (The Thing, 1982) e a maravilhosa transformação de Um Lobisomem Americano em Londres (An American Werewolf in London, 1981). O período ainda era audacioso, representado pelas manifestações e conflitos sociais, permitindo que as criaturas saíssem finalmente da escuridão dos guarda-roupas. O horror sugestivo não era mais tão interessante, e o público queria ver monstruosidades em ação.

Os hippies deixavam como herança a extravagância. Óculos enormes, cabelos longos e enrolados, roupas repletas de desenhos...eram o figurino do cinema. Era o início do chamado "Body Horror", estilo adotado por alguns cineastas como David Cronenberg para fazer o que fosse possível para machucar o corpo, e consequentemente atingir a audiência. Correntes grossas surgindo de lugares estranhos para rasgar a pele da vítima, numa mistura prazer e dor, inspiravam Pinhead, com suas vestimentas escuras, - sem falar dos thrillers e, claro, dos slashers.

Na primeira metade da década de 90, muito do que se viu continuava. E era exatamente essa palavra que marcava a época: continuação! Ainda sofrendo os reflexos da Guerra Fria, e da queda do Muro de Berlim, o mundo tentava curar suas feridas, o que permitiu uma expansão da democracia e da alta do consumismo. Esse crescimento mundial - com exceção da África, onde só aumentava o número de vítimas da AIDS - trouxe desenvolvimentos tecnológicos, principalmente na informática, facilitando o uso de CGI nos cinemas. Se alguns sabiam usar bem (Jurassic Park, 1993), a grande maioria começava a transformar os monstros em bonecos digitais e, consequentemente, artificiais. Daí para partir para os trashes, aquelas produções feitas sem recursos mas levadas extremamente a sério, foi só um pulo.

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Os assassinos continuavam fazendo vítimas, em sequências desnecessárias, evidenciando a falta de criatividade para matar. Clichês atrás de clichês obrigavam o gênero a se reinventar, até mesmo por conta da diminuição drástica nas bilheterias. O gênero partia para o thriller psicológico, pelo jogo de gato e rato, como o promovido por Hannibal Lecter em O Silêncio dos Inocentes (Silence of the Lambs, 1991), além de outros como Copycat (1995) e Se7en - Os Sete Crimes Capitais (Seven, 1995). Ainda assim, era muito pouco para o gênero.

Não é à toa que a década de 90 é considerada a mais fraca para o cinema de horror. É possível contar nos dedos de duas mãos os bons exemplares como os já citados e Alucinações do Passado (Jacob´s Ladder, 1990), À Beira da Loucura (In The Mouth Of Madness, 1994) e Drácula de Bram Stoker (1994). Também contribuiu para essa baixa a popularização do "terror teen" promovido pelo longa de Wes Craven Pânico (Scream, 1996). Enquanto brincava com os clichês, Craven resgatava os assassinos mascarados e os finais surpresas. Também se aproximava mais uma virada de milênio, e o medo de um fim dos tempos era lembrado em produções apocalípticas (Armageddon, Impacto Profundo, O Fim dos Dias...)

Na primeira década do século XXI, a destruição das Torres Gêmeas mostrava a fragilidade das superpotências. Assim, o tom apocalíptico do fim do século permanecia em alta, despertando mais uma vez os mortos, graças ao Extermínio (28 Days Later, 2002), de Danny Boyle, e o remake de Despertar dos Mortos, Madrugada dos Mortos (Dawn of the Dead, 2004). Mas também houve proliferação dos remakes de produções asiáticas e intensificação do terror teen, com mais assassinos mascarados e massacres, até a chegada definitiva do "torture porn": não bastava mais apenas matar os jovens bonitos, era preciso nos conduzir a um inferno de tortura e dor. Nesse palco de violência e sofrimento, nasceu o temível JigSaw, numa mistura do que Eli Roth desenvolveu e O Albergue (Hostel, 2005) e Seven.

Com a realidade assumindo seu papel assustador, tendo o terrorismo à espreita, o cinema fantástico buscava a realidade. Cadáveres reais, estudos de anatomia e grafismo levavam o gênero a uma identificação maior com o público. Para isso, refizeram clássicos do passado, extraindo a artificialidade e a caricatura: O Massacre da Serra Elétrica (2003) abriu o caminho, atingindo os ícones do gênero (Jason, Freddy Krueger...) até as adaptações dos quadrinhos (Cavaleiro das Trevas). Se o sangue e as mortes "reais" já não fossem por si só suficientes, Oren Peli e seu Atividade Paranormal resgatou o estilo A Bruxa de Blair (conhecido como found footage) para dar mais veracidade aos acontecimentos e criar uma tendência refletida no reality show e na superexposição.

E o que os novos tempos trazem para o gênero? Redes sociais, uso de tecnologias de informação e a fácil aproximação das pessoas já fazem parte do estilo atual. Basta ver o novo Poltergeist para ver celulares modernos, tablets, tecnologia 3D e até drones em ação. Também pode-se esperar muitas produções sobre explorações espaciais, viagens no tempo e o mais assustador de tudo: o remake do remake. Filmes que já foram refeitos terão novas leituras e versões variadas, com a desculpa de apresentar o horror para o novo público.

Talvez você pergunte: e o Brasil? É possível conduzir o cinema brasileiro por um caminho distinto. Atrasada por conta de uma censura agressiva, a produção brasileira fantástica é sempre lembrada pela trajetória de José Mojica Marins, desde as dificuldades de conseguir financiamento ao modo marginal na concepção de suas obras. Aliás, o gênero fantástico brasileiro se baseia nos esforços independentes de cineastas ousados, das mais diversas partes do país, e o seu idealismo na luta por fazer diferença. Ainda que estivesse sob a influência das tendências mundiais, a busca por uma identidade própria atrasou muito o desenvolvimento do nosso cinema fantástico, principalmente com o esforço do padrão Globo de fazer filmes (quando não retratam a história, tentam recriar a pobreza para atingir as massas).

Para o público, resta apenas conhecer o real cinema brasileiro através de festivais. E vale a pena, viu? Valorizar os esforços de Mojica e muitos outros como Petter Baiestorf, Felipe M.Guerra, Joel Caetano, Rodrigo Aragão... para ver que o Brasil tem artistas com mais dedicação e competência do que grande parte dos que vêm de fora. E essa é uma tendência que acompanha a nossa história há muito tempo!

Marcelo Milici é professor, com especialização em Horror Gótico, idealizador do Boca do Inferno, fã de rock´n roll e paçoca.

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