De certa forma, é uma piada tão cruel, ousada e perversamente engraçada como algo vindo do próprio Coringa. Coringa: Delírio a Dois é, em argumento e intenção, uma espécie de anti-Coringa; um filme que analisa os acontecimentos e motivações do capítulo anterior para criticar aqueles que supostamente o entenderam da forma errada. A começar por ser um musical (e, claro, esconder ao máximo essa escolha do grande público), o diretor Todd Phillips almeja fazer uma grande trollada ao, propositalmente, rejeitar o tipo de continuação que é esperado de um blockbuster bilionário.
“Vamos dar ao povo o que eles querem,” dizem, em certo momento, o Coringa de Joaquin Phoenix e a Harley de Lady Gaga. Apesar da fala, não é exagero dizer que o filme faz exatamente o oposto disso.
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O discurso de Delírio a Dois de que Arthur Fleck, novamente vivido por Joaquin Phoenix como alguém na beira do êxtase e da depressão, não é alguém a ser seguido e celebrado, mas sim tratado e lamentado, já existia em algum grau no primeiro Coringa, mas assim como aquele filme termina com uma cidade inteira transformando o palhaço em herói, o próprio Phillips acaba pendendo para o lado da admiração. Coringa não é uma crítica do personagem. Quer você pense nisso como uma atitude incel e adolescente de conferir significado a um vilão caótico de quadrinhos, quer veja algum valor na tal crítica à sociedade, uma coisa é inegável: há algo pulsante em Coringa. Phillips e Phoenix, visivelmente, gostam daquilo.
Delírio a Dois sugere que a dupla têm vergonha disso - ou ao menos se arrependeram. Os dois não parecem estar confortáveis com a ideia de virar ícones para quem compra camisas estampadas com Heath Ledger dizendo “Why so serious?” ou para usuários de rede sociais que, em suas bios, se autodeclaram anarquistas. Talvez tenha sido o Batman de Matt Reeves, um épico criminal que coloca em cheque o mesmo tipo de admiração dos fãs, mas agora em relação ao arqui-inimigo do Coringa. Ali, ao perceber que o psicopata que ele devia prender o considerava um aliado, Batman descobre que se pintar apenas como um símbolo de vingança e trevas não é suficiente. Só incitar as pessoas ao medo e à violência não basta.
Ou talvez seja porque Phillips se vê como um Autor com A maiúsculo. Ele adora as comparações (nada merecidas, diga-se de passagem) com Martin Scorsese, não parece ter interesse na mitologia das HQs de onde o Coringa saiu ou em ser visto como alguém que dirige “filmes de quadrinhos.” Seja qual for a resposta, Coringa: Delírio a Dois ousa dizer que Coringa foi um erro, ou ao menos, que quem saiu daquele filme admirando-o como os gothamitas terminam admirando Arthur Fleck não entendeu a piada.
Só que há dois problemas nisso. O primeiro é que o próprio Phillips é um desses admiradores, e se ele não acredita em seu argumento, nós também não. Não é possível sair do primeiro Coringa sem sentir a empolgação do cineasta em encenar Phoenix dançando no topo das escadas, colocando a maquiagem branca e chorrindo no espelho. Delírio a Dois é um filme que trata do julgamento de Arthur Fleck e da fidelidade superficial de seus apoiadores, cuja paixão por seu ídolo continua pouco justificada dentro do próprio texto, mas que agora ganha um avatar na Harley de Lady Gaga. Ela incorpora o que Phillips quer dizer, tanto no filme quanto sobre ele: vocês gostam do palhaço, mas esquecem o homem. Nós nunca compramos essa ideia. O diretor também não.
Por um lado, ir na contramão do que os fãs do Coringa e fãs de Coringa querem levanta possibilidades interessantes para Delírio a Dois como obra, o colocando na companhia dos poucos e valiosos filmes de franquias modernos que ousam questionar seu próprio legado (pense em Matrix Resurrections). A questão é que Phillips não é um Wachowski, e isso nos leva ao segundo problema de Delírio a Dois: no lugar da energia questionável mas intensa de alguém genuinamente excitado pela ideia de brincar com o Coringa, há uma chata e nada envolvente exploração de Arthur Fleck.
Por mais que queira voltar o foco para o humano doente, e não para o maníaco assassino, Phillips simplesmente não consegue encontrar facetas nele para dar ao filme um olhar sério que seja tão eficaz quanto o pubescente, porém vivo, fascínio por um personagem que se sentiria em casa numa rede social gerida por Elon Musk. Cabe à atuação de Phoenix nos aproximar do menino traumatizado por trás de toda a revolta. Ainda mais do que no anterior, Coringa: Delírio a Dois conta com uma excelente atuação do vencedor do Oscar. Se é possível argumentar que sua primeira passagem por Arthur foi um (ótimo, mas calculado) amontado de gestos e caras, aqui ele harmoniza tudo isso num único pacote, onde cada movimento emocional dá lugar ao próximo.
Mas o filme ao seu redor não faz nada com isso, e talvez não haja explicação melhor do que o fraco uso da musicalidade. Por mais que tenha negado isso por meses (até, enfim, admitir), Phillips fez um musical, e a escolha, apesar de evitar o desperdício de Lady Gaga (Harley nunca vira uma personagem interessante, mas ao menos ouvimos sua voz algumas vezes), revela um esforço que parou pela metade. Optar por este gênero cinematográfico é parte da atitude de troll do filme. Audiências modernas muitas vezes rejeitam musicais simplesmente por serem musicais. O intuito de frustrar e alienar, porém, fica por isso mesmo, pois se há dois números genuinamente bons, é muito.
Com exceção de uma divertida cena com Arthur e outros prisioneiros de Arkham, as canções acontecem em meio a um vão de nada, palcos envoltos por cenários vazios e sobre os quais Phoenix e Gaga tentam encontrar fogo num longa-metragem que outrora sequer gera faíscas. A falta de imaginação é palpável, e assim o musical se torna uma ferramenta para cutucar quem esperava um épico do mundo do crime e loucura sem oferecer uma alternativa competente.
Terminamos com a sensação de que Todd Phillips teria se beneficiado mais de abraçar seus piores instintos. Para alguém tão fã de Scorsese, ele tem dificuldade de se divertir com os monstros que coloca em tela. A razão pela qual obras do mestre como O Rei da Comédia, Taxi Driver e O Lobo de Wall Street foram taxadas de “perigosas” (palavra aplicada ao primeiro Coringa sem muita justificativa) é porque Scorsese consegue, sem jamais transformá-los em mocinhos, nos colocar do lado de seus anti-heróis ao ponto de os entendermos de forma íntima. É divertido ver Henry Hill cometer crimes em Os Bons Companheiros, ver o Lobo de Jordan Belfort dar golpes, mas eventualmente a dura realidade vem, e sua chegada é ainda mais imponente por conta do quão fortes eram as risadas dos bons tempos de ilusão.
O erro de Phillips é, quer por indecisão ou incapacidade, então, ficar no meio termo. Coringa: Delírio a Dois rejeita a diversão questionável do primeiro filme, mas não vai com força suficiente para o lado oposto porque seu criador não quer, no fundo, seguir essa rota, e tampouco se mostra capaz de explorá-la a fundo. Ele quer rir com o palhaço, mas termina chorando sozinho.