Quando Mulher-Maravilha estreou em 2017, um novo tipo de filme de herói foi inaugurado. Apesar de seguir as mesmas regras tradicionais dos longas baseados em HQs, existia algo sutilmente diferente no filme de Patty Jenkins, que era difícil de colocar em palavras, mas foi sentido, principalmente pelo público feminino. O jeito que Diana se mexia, lutava e mostrava sua força, por algum motivo, era inédito. O poder da personagem era representado de um modo diferente do que havíamos visto em Batman vs Superman: A Origem da Justiça e isso, por mais sutil que seja, tem um nome muito claro.
Em 1975, a crítica de cinema britânica Laura Mulvey popularizou o termo “olhar masculino” (male gaze, no original), que diz respeito à perspectiva masculina das personagens femininas na tela. Apesar da expressão não se limitar ao visual em si, e abarcar tudo que é atribuído às personagens quando são construídas como objeto de desejo ou dependentes do interesse ou jornada de um homem, o olhar masculino em filmes de super-herói geralmente é muito visível. Um dos casos mais gritantes disso ficou claro no uniforme das Amazonas em Liga da Justiça, que apareceu bem diferente dos trajes de Mulher-Maravilha.
Para Diana Prince, o resultado foi mais discreto, e por isso, muito mais relevante. Quando a Mulher-Maravilha foi filmada pelas lentes de Jenkins, não era seu traje que estava diferente, ou sua personalidade. Era simplesmente o modo de retratá-la, os ângulos utilizados e o jeito de refletir sua força na tela. A comparação com Liga da Justiça deixa isso muito claro, principalmente porque as lentes do filme diversas vezes capturam Gal Gadot vista de baixo, com a câmera olhando para cima, enquanto Jenkins se coloca no mesmo nível da personagem:
O novo caso do momento é Arlequina, que agora protagoniza o seu próprio filme, Aves de Rapina (Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa). Assim como Mulher-Maravilha, a personagem da DC agora ganhou um filme dirigido por uma mulher, Cathy Yan, e apareceu em um enquadramento totalmente diferente, ainda mais óbvio do que o caso de Gadot. Isso acontece em grande parte por causa da própria Arlequina, uma personagem já complicada, que teve seu primeiro tratamento no cinema bastante peculiar. Batman Vs. Superman teve o seu olhar masculino, mas são raras as vezes que uma personagem feminina foi tão sexualizada quanto a Arlequina de David Ayer.
Existe um carisma construído maravilhosamente por Margot Robbie em cima da Arlequina do Esquadrão Suicida, mas em absolutamente todas as suas cenas, o foco da personagem é sua aparência. O caso é tão claro que para explicá-lo não é preciso tantas linhas de texto. Arlequina literalmente tem uma cena em que se veste na frente dos homens enquanto a câmera caminha pelo seu corpo.
Ao trazer uma mulher ao comando na nova produção, a Warner fez um movimento claro de mudar a representação de Arlequina nas telas. Se aproveitando do sucesso da personagem em um dos filmes mais criticados do estúdio, a DC tomou nas mãos a responsabilidade de ajustar Harley aos moldes das discussões atuais, e acertou muito bem em trabalhar em sua emancipação. Cercá-la de mulheres também ajudou a exaltar mais seus outros aspectos que não sua sensualidade.
Um dos modos mais claros de comparar a visão de Arlequina em Esquadrão Suicida e Aves de Rapina é lembrar que os dois filmes tiveram cenas com a personagem lutando em uma enxurrada d’água, de camiseta branca. Enquanto a Arlequina de Esquadrão Suicida fica com a blusa colada e sutiã aparente, a câmera de Yan usa a água de modo estético à favor da ação, e nunca para acentuar o corpo da personagem.
Isso não é feito em detrimento do figurino exorbitante ou da personalidade irreverente de Harley. Ela aparece em paletós de paetê, shorts curtos, um macacão dourado e está sempre de top rosa, inclusive quando usa apenas uma jaqueta transparente ou o macacão aberto. A Arlequina de Aves de Rapina não tem menos sensualidade que a de Ayer, ela é apenas menos sexualizada. Do mesmo modo, a Canário Negro também aparece com sutiãs aparentes, tops, calças super justas, salto alto, corpete e decote. A diferença é que isto nunca está em primeiro plano ou é retratado de modo a objetificar as mulheres.
Enquanto este tipo de construção de personagem pode passar despercebido por parte do público, ele certamente faz diferença no olhar de muita gente. Assistir uma Arlequina acompanhada por um grupo de mulheres que não são filmadas como objetos certamente é inspirador e diferente do que estamos acostumados a ver em filmes de herói ou de ação, de modo geral. Ver mulheres como a gente na tela faz diferença, desde o suor até elástico de cabelo e a fome por maravilhosos sanduíches de ovo. Sobre isso, a diretora resumiu perfeitamente [via DB]: “esse é o verdadeiro olhar feminino!”.