Não há uma fórmula exata para criar um grande vilão. Essa figura pode surgir como uma antítese do herói, como a representação dos temores de uma época ou simplesmente pela necessidade de um novo inimigo para a história da semana. Chega a ser curioso que o Universo DC tenha como grande vilão o Darkseid, personagem que só veio a existir graças a uma grande briga entre seu criador Jack Kirby e a Marvel.
É impossível passar pela história das HQs sem se deparar com Kirby. Apelidado de “Rei dos Quadrinhos”, o autor é lembrado primeiro por seu estilo único e, depois, por cocriar boa parte do panteão do Universo Marvel. Desde a concepção do Capitão América com Joe Simon na década de 1940, passando pela frutífera parceria com Stan Lee nos anos 1960, que gerou títulos como Os Vingadores, Quarteto Fantástico e X-Men, ele se consolidou como uma lenda entre os leitores.
Após quase uma década criando algumas das mais importantes e influentes histórias desses personagens, Kirby decidiu deixar a Marvel por causa de anos de desgaste com a empresa. Em primeiro lugar, ele nunca teve o reconhecimento devido, mesmo produzindo de forma impressionante. Esse incômodo aumentava quando o assunto era ficar à sombra de Stan Lee em relação aos louros do trabalho da dupla. Além disso, o quadrinista sofria também com falta de controle criativo e, especialmente, financeiro.
Mesmo tendo criado alguns dos mais importantes da editora, Kirby passou anos lutando por uma remuneração decente, sem sucesso. O autor assistiu a algumas de suas criações virarem desenhos animados, produtos licenciados - alguns até estampados com artes suas - e seguia sem receber royalties, sendo pago por página produzida. A situação era tão absurda que no livro Marvel Comics - A História Secreta , o autor Sean Howie relata que Kirby não conseguia nem mesmo ficar com as artes originais das revistas que desenhava, já que essas eram dadas como pagamentos para os ajudantes dos escritórios da empresa Marvelmania.
A gota d’água para Jack Kirby foi sua última tentativa de firmar um contrato com a Perfect Film & Chemical Corporation, então dona da Marvel Comics. Os termos foram tão ultrajantes que o Rei decidiu deixar a empresa para criar suas novas histórias na concorrente direta, a DC Comics. O resultado disso foi nada mais do que Darkseid e o Quarto Mundo, partes fundamentais do núcleo cósmico da DC Comics.
Chegada na DC Comics e a criação do Quarto Mundo
Quase uma década após dar o pontapé inicial no Universo Marvel com a primeira HQ do Quarteto Fantástico, Jack Kirby chegava à DC Comics em 1970 com uma verdadeira fome de criar. Como se lembra Mark Evanier, ex-assistente e amigo de longa data do quadrinista, uma grande inspiração para o Rei foi a redescoberta da saga do Senhor dos Anéis. Inspirado pela estrutura de um grande épico contado através de histórias individuais, ele deu início ao ambicioso projeto que viria a ser conhecido como Quarto Mundo.
A trama segue uma guerra ancestral entre Nova Gênese, o planeta evoluído e pacífico habitado pelos Novos Deuses, e o cruel mundo de Apokolips, governado pelo tirano Darkseid e seus cúmplices. Essa antiga rivalidade chega ao seu momento definitivo quando o vilão descobre a existência da Equação Anti-Vida, uma arma de manipulação capaz de controlar completamente toda a vida existente.
Essa aventura monumental foi dividida entre as HQs inéditas Novos Deuses, Senhor Milagre e Povo da Eternidade, e a já existente Jimmy Olsen, o Amigo do Superman. É de se estranhar que esta última, até então um título dedicado a aventuras bobas com foco na comédia, tenha entrado nesse balaio, mas a razão é simples: Kirby precisava de um título já em publicação e decidiu por um que não tinha uma equipe fixa, já que não queria “roubar” o trabalho de ninguém. E é por isso que Darkseid é visto pela primeira vez na revista do jovem amigo do Superman, e não em uma mega saga da Liga da Justiça.
Se a chegada de Kirby à DC criou grande expectativa na editora e nos leitores, o autor as correspondeu à altura. Nas páginas dessas quatro HQs bimestrais, o Quarto Mundo tomou forma de uma maneira rica, que se aproveitava de influências diversas para a criação de uma história empolgante embalada por uma mitologia sólida. Através de diferentes perspectivas do combate, o Rei teve a chance de criar um canto próprio dentro do Universo DC.
Chega a ser curioso que o principal fruto dessa enorme gama de tramas e personagens seja Darkseid, que acabou alçado ao posto de maior vilão do Universo DC. Tirano supremo, o personagem foi criado como uma clara extrapolação sci-fi da figura de Adolf Hitler, personalidade que afetou Jack Kirby, um judeu que serviu na Segunda Guerra Mundial. Não bastasse a filosofia tirana, o discurso venenoso e até o gestual, o quadrinista fez questão de literalmente citar o ditador alemão nas páginas de Povo da Eternidade.
Sendo a encarnação do mal em um universo cheio de heróis virtuosos e praticamente divinos, Darkseid se mostra um exemplo prático da profundidade que Kirby trouxe para o Quarto Mundo. Empolgante, a obra influenciou gerações de leitores e criadores como Grant Morrison, que a relembrou com carinho no livro Superdeuses: “manipulação genética, manipulação midiática, as raízes do Fascismo - Kirby estava em chamas e tinha algo inédito a dizer sobre tudo o que existia nesse mundo”.
O Quarto Mundo chega ao fim (?)
É uma pena que Jack Kirby nunca tenha concluído seu épico da forma como gostaria. Contrariada pelo número de vendas - que era bom, mas abaixo do esperado -, a DC cancelou os títulos um a um e pediu novas HQs inéditas ao quadrinista. Após criar personagens como Etrigan e O.M.A.C. e retornar para a Marvel, Kirby só terminaria sua epopéia mais de uma década depois na Graphic Novel The Hunger Dogs, que chegou recentemente ao Brasil no volume 9 da coleção Lendas do Universo DC - Quarto Mundo.
Ainda assim, é inegável que o legado do Quarto Mundo segue até os dias de hoje. Ano após ano, Nova Gênese e Apokolips são visitados em sagas cada vez maiores, que envolvem seus heróis e, especialmente, o vilão Darkseid. Em sua eterna busca pela Equação Anti-Vida, o personagem segue combatendo heróis e criando Crises até mesmo fora das HQs. Figura conhecida em animações e games, o déspota de Apokolips agora se prepara para estrear oficialmente nos cinemas na versão de Zack Snyder para a Liga da Justiça. Uma jornada e tanto para o personagem, fruto de uma briga entre um criador e uma empresa.