Ok, vamos deixar uma coisa bem clara aqui: estou bem empolgado por The Flash. Mesmo que Ponto de Ignição esteja longe de ser minha história favorita do personagem, o último trailer parece trazer liberdades criativas o bastante para tornar a trama emocionante de verdade, mesmo custando a inserção de vilões do herói. Dito isso, estou torcendo mais do que gostaria de admitir para que o reboot do universo cinematográfico da DC nos ajude a deixar Barry Allen, o segundo personagem a usar o manto do Velocista Escarlate, no passado.
Claro que isso vem de um lugar muito pessoal. Como leitor do Flash desde pequeno, nunca consegui me identificar com Barry, um herói que, diferente de outros pilares da DC como Superman, Mulher-Maravilha e até o Batman, sempre teve uma abordagem punitivista em relação aos seus vilões. Ao mesmo tempo, ele sempre me pareceu um dos membros mais sem personalidade da Liga da Justiça.
Minha identificação maior, aliás, sempre foi com seu sucessor, Wally West, não só porque cresci com ele no desenho clássico da Liga, mas porque sua presença nos quadrinhos sempre me pareceu mais leve, e a forma como ele lutava pela reabilitação de seus vilões dava às suas histórias camadas que as de Barry, convenhamos, nunca tiveram. Além dele, o próprio Bart, neto do alvo deste rant, foi um herói infinitamente mais interessante, fosse usando o codinome de Impulso, Kid Flash ou Flash.
Mas, se Barry é assim tão chato, por que diabos ele protagonizou a série da CW por nove temporadas e ainda abocanhou uma vaguinha na Liga da Justiça de Zack Snyder nos cinemas? A resposta tem nome e sobrenome: Dan DiDio, o infame ex-editor da DC Comics que já várias vezes se pronunciou contra personagens-legado como Wally e Dick Grayson, o primeiro Robin e atual Asa Noturna. Em 2011, o quadrinista foi um dos principais nomes dos Novos 52, reboot do selo que tentava “modernizar” seus maiores heróis. Uma das grandes — e polêmicas — mudanças dessa iniciativa foi estabelecer Barry como o único Flash do universo DC, algo que foi levado para a TV e para o cinema.
Além do clássico O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller, Snyder usou os Novos 52, e por tabela, o pavor de DiDio em relação a heróis jovens, como base para seus filmes do DCEU. Mas, embora use o nome de Barry, o diretor precisou dar seus pulos (e, pelo que é possível ver nas prévias, Andy Muschietti também) para dar um mínimo de personalidade para o velocista. A solução encontrada foi descartar todas as características básicas do cientista forense e, em seu lugar, trazer a jovialidade e animação características de Wally e Bart.
Na TV, o caso foi ainda pior. Por mais que esteja longe de ser um ator ruim, Grant Gustin teve um pouco de dificuldade para manter seu Barry interessante ao longo dessas nove temporadas. Até por isso a série do Arrowverse cercou o herói de coadjuvantes, muitos deles irrelevantes nos gibis, quase como uma forma de contornar a superficialidade do protagonista. Mesmo tendo suas versões de Bart e Wallace (o terceiro Kid Flash), The Flash nunca conseguiu se distanciar do dramalhão maçante e repetitivo que cerca o velocista. Não fosse por Iris (Candice Patton) e Joe (Jesse L. Martin) e, claro, o esforço do próprio Gustin, dificilmente a série sobreviveria uma década.
Com o fim do The Flash na TV e o filme homônimo servindo como um primeiro divisor entre DCEU e o novo DCU de Peter Safran e James Gunn, chegou a hora perfeita para investir de verdade em outros Flashes e, com ao menos um Robin já confirmado na nova franquia, já é possível sonhar com a Família Flash tendo um papel decente daqui para frente.
O Peter Pan Escarlate
Uma das razões dadas por DiDio para odiar Wally é o fato de sua história de origem e seu início de carreira estarem extremamente conectados a Barry, algo que, na opinião do roteirista, torna impossível que sua história seja contada individualmente. E, ainda que esse argumento até pareça fazer sentido, na prática, ele já foi derrubado repetidamente.
Os primeiros a mostrar que essa fala não faz sentido foram George Pérez e Marv Wolfman, que, ao longo de sua fase nos Novos Titãs, desenvolveram a personalidade de Wally para muito além do “sobrinho do Flash”. Na mão da dupla, o garoto se transformou em um herói responsável e respeitado, cujo arco culminou nele assumindo o manto do tio após o emocionante sacrifício de Barry em Crise nas Infinitas Terras.
Alguns anos depois, foi a vez de Mark Waid, um dos maiores roteiristas de gibi de herói vivos, afastar de vez Wally de Barry. Na fase do quadrinista, o ex-pupilo busca honrar o legado do tio, mas agindo de sua forma única. Ao longo dessas edições, o herói faz amizade com o ex-vilão Flautista, ajuda o Trapaceiro e até tem parcerias relâmpago com vilões icônicos como Capitão Frio e Onda Térmica. Além disso, ele também conhece e se casa com Linda Park, com quem hoje tem uma extensa família nos gibis.
Mais recentemente, Jeremy Adams abriu ainda mais o rombo entre os dois ao trazer Wally de volta ao posto de Flash principal dos gibis. Em suas novas aventuras, o herói viaja no tempo, enfrenta a Vovó Bondade e “encarna” em diferentes Flashes de diferentes épocas (incluindo um dinossauro).
Esse desenvolvimento afastado de Barry não é exclusividade das páginas. Quem cresceu com a animação clássica da Liga da Justiça sabe que o Flash divertido, engraçado e surpreendentemente profundo era Wally, que conseguiu manter sua personalidade das HQs sem necessariamente ser associado ao seu antecessor. Barry, aliás, nem ao menos é citado no desenho, deixando claro mais uma vez que, ao contrário do sobrinho, ele pode ser completamente ignorado sem que isso afete a trama de seu ex-pupilo.
Enquanto isso, Barry passou os anos recentes em um grande vai-não-vai com Iris e um cansativo loop dramático que, a exemplo do que a rival Marvel faz com o Homem-Aranha, impede qualquer crescimento do personagem, mesmo com outros heróis das Eras de Prata e Ouro chegando a fases de vida completamente diferentes da de quando estrearam. Essa Síndrome do Peter Pan editorial deixa o segundo Flash anos-luz atrás de seus sucessores — e de alguns de seus antigos vilões.
Amanhecer da DC
Se no começo da década passada as adaptações da DC para os cinemas eram infestadas pelas mudanças dos Novos 52, o DCU de Gunn e Safran chegará na esteira da fase atual da editora, chamada de Dawn of DC (amanhecer da DC, em tradução livre). Ao contrário do reboot de 2011, a nova empreitada coloca Wally, Dick e os Novos Titãs originais como os principais pilares de seu universo.
Conforme Gunn adiantou anteriormente, ele e o editor/presidente da DC, Jim Lee, já começaram a conversar sobre lançamentos sinérgicos nas telas e nas páginas. Com Wally protagonizando sua própria revista e ainda tendo participação crucial no principal supergrupo dessa nova fase, é de se esperar que ele e a família que o cerca também sejam levados para as produções do novo DC Studios.
A DC mudou muito desde que Barry foi criado, mudança que o personagem, como já disse, não acompanhou. Wally, Bart e companhia, por outro lado, se encaixaram como uma luva na linha editorial do selo. Com o universo cinematográfico prestes a passar por um chacoalhão, faz muito mais sentido trazer personagens que, mesmo anos depois de suas primeiras histórias, se mantiveram atuais, do que continuar insistindo em um herói cuja vida pode ser resumida em correr, passar raiva, chorar e colocar mulheres na geladeira.
Tenho muitas esperanças para The Flash. Seja pela recepção absurdamente boa que o filme teve desde sua primeira exibição na CinemaCon ou pelos elogios que o filme tem recebido dos poucos que já puderam conferir o filme — incluindo Edgar Wright, talvez meu diretor favorito —, minha empolgação pode ser definida (corretamente, aliás) como “infantil”. Por outro lado, não consigo me desvencilhar desse desejo de ficar pelo menos alguns anos sem ver Barry Allen dar as caras em qualquer adaptação que seja.