Criada em 1963, Doctor Who é, desde então, um dos grandes pilares da cultura pop do Reino Unido e da ficção científica de modo geral. Como acontece com qualquer propriedade intelectual longínqua, a série passou por muitos altos e baixos, como a infame demissão de Colin Baker, o sexto Doutor, que nem pôde filmar uma cena de despedida em 1986, ou o cancelamento repentino da chamada Era Clássica em 1989. No revival, iniciado em 2005, não foi diferente. Problemas de bastidores surgiram já na primeira temporada, e Christopher Eccleston, intérprete do nono Doutor, se demitiu por causa das famosas “diferenças criativas”. Ainda assim, a qualidade das primeiras temporadas da nova fase passou praticamente ilesa pelas turbulências, agradando crítica e público. O momento de divisão aconteceria em 2010, quando Steven Moffat assumiu o posto de showrunner e fez escolhas que, mesmo quatro anos depois de sua saída, seguem afetando a série.
Obviamente, é necessário reconhecer que Moffat teve sim acertos em sua passagem por Doctor Who. Foi sob seu comando que a produção se tornou de vez um grande sucesso mundial. O produtor e roteirista soube escalar e criar bons personagens, como River Song (Alex Kingston), Amy (Karen Gillan), Rory (Arthur Darvill), Bill (Pearl Mackie) e - apesar do que dizem alguns haters dentro do fandom - Clara (Jenna Coleman). Moffat também acertou nas escalações de Matt Smith e Peter Capaldi, que conquistaram suas próprias bases de fãs no período em que viveram o 11º e 12º Doutor, respectivamente.
Acontece que a visão americanizada de Moffat foi, aos poucos, descaracterizando a série, criada originalmente para o público infantil. Embora seu antecessor, Russell T. Davies, tenha introduzido interesses românticos para o Doutor quando chefiava a série, a forma como o Senhor do Tempo olhava para Rose (Billie Piper) era carinhosa e admiradora. Obstinado em levar Doctor Who para as massas, Moffat substituiu esse amor mais “fofo” por momentos de tensão sexual, especialmente nas temporadas em que Smith viveu o Senhor do Tempo. O vício hollywoodiano também se refletiu na criação de cenas de ação cada vez mais grandiosas e histórias que prometiam o fim do universo caso o Doutor não impedisse, algo que fugia completamente da proposta original de fazer crianças se interessarem por ciências e história.
Ao deixar o cargo para Chris Chibnall, o agora ex-showrunner entregou uma verdadeira bomba ao seu sucessor: ciente das críticas recebidas nos sete anos anteriores, o novo chefe precisaria manter as escolhas acertadas de Moffat ao mesmo tempo em que devolvia Doctor Who às suas raízes. Trazendo Jodie Whittaker como a primeira protagonista mulher da série, o produtor criou ainda mais expectativas em torno de sua Era, que começou relativamente desequilibrada, muito por causa do malabarismo que Chibnall teve que fazer.
A 11ª temporada, primeira do novo showrunner, foi alvo de críticas por não encontrar uma identidade própria. Diversas vezes, percebia-se que Chibnall e sua equipe tentaram emular os acertos dos últimos 13 anos, criando um híbrido relativamente desequilibrado, que recuperava a inocência da proposta original de Doctor Who, mas ainda criava cenários e histórias grandiosas de forma desencaixada. A mistureba prejudicou o ritmo dos episódios, que às vezes nem pareciam pertencer a uma mesma série.
Os problemas continuaram no ano seguinte. Desta vez mais próximo do que os whovians estavam acostumados a ver pré-Moffat, Doctor Who trouxe histórias criativas e (em sua maioria) divertidas e mais contidas em si mesmas. A sombra de blockbuster criada pelo showrunner anterior, no entanto, continuava cobrindo Chibnall, que virou não só a 12ª temporada, mas todo o cânone da franquia na tentativa de atrair fãs de histórias como “A Pandórica Abre” ou “Um Bom Homem Vai à Guerra” de volta para a série.
Mesmo que as duas temporadas já transmitidas de Doctor Who sob o comando de Chibnall não sejam ruins - longe disso, aliás -, é evidente que o atual comandante da produção ainda não entendeu como imprimir sua própria identidade na série. Embora tenha devolvido a franquia às suas raízes em diversos episódios, o showrunner parece ainda assustado demais pelo legado de Moffat e seus Doutores mais sombrios para abandonar definitivamente o vício pelo épico estabelecido nos sete anos em que seu antecessor comandou o destino da TARDIS.
A pluralidade de vozes, visões e, claro, protagonistas entregues nestes quase 60 anos de história é o que permitiu que Doctor Who durasse e crescesse tanto. Responsável por renovar a paixão pela ficção científica em diferentes gerações, a série precisa que suas mentes criativas tenham menos vergonha de mostrar suas ideias, mesmo que isso signifique deixar o espetáculo e grandiosidade cinematográfica um pouco de lado. Afinal, qual a necessidade de sempre pousar em meio a um gigantesco perigo intergaláctico quando podemos encontrar pessoas como Rosa Parks, William Shakespeare, Agatha Christie e outras figuras tão fascinantes e importantes quanto uma batalha pelo destino do universo?