UMA NOVA RETOMADA?

Não por sorte, o cinema nacional sobreviveu à pandemia e às insistentes fake news que vilanizaram — quando não criminalizaram — a produção cultural. Entretanto, ele definitivamente não saiu ileso. Entenda a situação atual do audiovisual brasileiro e qual é a relevância das políticas públicas para colocá-lo de volta nos trilhos

Mariana Canhisares Reportagem

"É preciso estar em estado de alerta, a comunicação não pode parar nunca. Não dá para relaxar. Tem que ficar o tempo inteiro explicando para a sociedade a importância da cultura e como ela funciona". Esta é a resposta que a diretora Laís Bodanzky espera do novo Ministério da Cultura, recriado há pouco mais de 100 dias, e a razão não deve ser um mistério para você, leitor. Mais do que extinguir a pasta na reforma administrativa de 2019, o então presidente Jair Bolsonaro (PL) adotou — ou, em alguns casos, deixou de adotar — uma série de medidas que prejudicaram o setor em um momento especialmente delicado: a pandemia.

Talvez o dado que melhor dê a dimensão deste descaso seja a comparação entre o chamado orçamento secreto e o orçamento destinado à Cultura. De acordo com levantamento feito pela revista Piauí, entre junho e dezembro de 2022, Bolsonaro liberou R$ 7 bilhões para as emendas de relatores, valor três vezes maior do que o total destinado para a Cultura naquele ano inteiro, que foi de R$ 1,67 bilhão. Deste tanto, apenas R$ 89,5 milhões foram usados efetivamente para o financiamento de projetos culturais — um montante que, por si só, foi 63% inferior ao gasto em 2018. O restante, em sua maior parte, foi aplicado na administração interna da Secretaria. Quer dizer, a Cultura definitivamente não foi uma prioridade naquele governo, e Bolsonaro deixou isso claro em toda oportunidade que teve.

A atual crise é, contudo, mais profunda do que “apenas” orçamentária. É, sobretudo, simbólica. As ideias designadas pelas palavras “artista” e “vagabundo” se aproximaram no imaginário coletivo. A Lei Rouanet virou sinônimo de roubo e corrupção, muito embora ninguém saiba muito bem como ela funciona. Em resumo, a arte foi criminalizada — ainda que não do ponto de vista jurídico, mas discursivamente. E a verdade é que continua a ser. Em janeiro, tão logo a ministra Margareth Menezes anunciou o desbloqueio de R$ 1 bilhão via Rouanet — aprovados no ano anterior, mas mesmo assim retidos —, o ex-presidente declarou: “recomeçou a festa”. O efeito desse sermão, reincidente e equivocado, no entanto, ficou evidente semanas antes, quando obras e artefatos históricos, verdadeiros patrimônios nacionais, foram depredados nos chamados “atos” de 8 de janeiro.

Independentemente da sua forma de expressão, se está no museu ou na rua, a cultura é a materialização da identidade de um povo, e só isso já bastaria para torná-la valiosa. Mas, além disso, esta é uma maneira de produzir riquezas para o Brasil. De acordo com estudo da Firjan (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro), de julho de 2022, a indústria criativa — que contempla as artes, mas também a publicidade e a tecnologia — representou 2,9% do PIB brasileiro em 2020, um valor que mantém uma trajetória ascendente desde 2004 e que é comparável ao setor da Construção Civil. É claro que este foi o ano da pandemia e, portanto, a cultura foi uma das áreas mais impactadas, mas esse resultado é, sim, uma prova da resiliência de todo o setor.

Este especial nasce, portanto, com o objetivo de prestar um serviço: explicar para você, leitor, de maneira simples e acessível, um pouco das engrenagens que compõem especificamente o nosso audiovisual. Apresentar como estamos e o que ainda dá para melhorar — afinal de contas, sempre há espaço para melhorias —, e, quem sabe assim, resgatar um pouco do orgulho pela nossa cultura, que na última década nos deu Que Horas Ela Volta?, Bacurau, A Vida Invisível, As Boas Maneiras, Turma da Mônica: Lições, Marte Um e Sideral, para ficar só no cinema.

TUDO AO MESMO TEMPO

O “marketing contra a cultura”, para usar uma expressão de Bodanzky, e as várias ameaças a instituições como a Ancine (Agência Nacional do Cinema) só não foram mais danosos porque, segundo a cineasta, o mercado se organizou. Esta, inclusive, é a razão pela qual Humberto Neiva, coordenador do curso de Cinema da FAAP, considera que o atual momento, embora grave, não seja tão desesperançoso quanto o apagão dos anos 1990. Naquela época, o presidente Fernando Collor eliminou a produtora e distribuidora estatal Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes) e o Concine (Conselho Nacional de Cinema), órgão que legislava sobre o cinema nacional. Como resultado, o Brasil ficou sem lançar praticamente nenhum longa por anos.

"Na Retomada, a gente foi construir do nada", explicou Neiva, lembrando que é neste momento que surgem as leis de incentivo e a preocupação de criar uma indústria. "Agora, a gente ainda tem elementos para dar continuidade. Com dificuldade? Sim, porque muita coisa foi mudada. É preciso retomar algumas questões legais, algumas regras que foram deturpadas. [Mas] a gente já tem toda uma indústria ali, ávida para fazer o que tem que fazer. Ela está parada, mas está pronta".

O preparo a que ele se refere contempla o processo de consolidação dos trâmites e da própria compreensão do mercado ao longo de praticamente duas décadas. Porque, veja, se no final dos anos 1990 e no início dos anos 2000, os projetos aprovados pelas leis de incentivo passeavam por todos os departamentos de uma empresa, tentando explicar como investir neles poderia beneficiá-la — isto é, através do abatimento fiscal e da publicidade, sobre os quais falaremos mais adiante —, hoje estas mesmas empresas já têm um departamento para receber projetos culturais. As produtoras de conteúdo, que se multiplicaram desde então, também já têm plena segurança de como o mecanismo funciona.

"Quer dizer, desde a formação até a cadeia de exibição, a indústria está informada. Porque já entrou na Academia, entende?”, continuou Neiva. “No curso de cinema, tenho duas disciplinas de legislação para os alunos entenderem o que é a Lei Rouanet, o que é a Lei do Audiovisual. O que é a Ancine e o que ela faz".

Para Bodanzky, no entanto, há ainda uma organização mais recente, que veio como resposta à pandemia e ao próprio governo Bolsonaro. “O setor audiovisual sempre foi muito politizado e organizado, mas, agora, ele está mais do que nunca. São muitas as associações, e não só da parte criativa: dos festivais, dos cinemas de rua, dos cursos livres. Os sindicatos dos trabalhadores do audiovisual estão mais fortes. Há uma consciência da importância dessas associações, porque a pandemia mostrou que elas funcionam”, disse, pontuando que o cenário poderia ser pior não fosse por elas. “Então tem um amadurecimento político do nosso setor, o que auxilia também nos diagnósticos no Brasil todo, apontando as urgências do dia”.

Mas, então, quais deveriam ser as áreas prioritárias para este momento de recuperação, no caso do cinema nacional? "É difícil falar isso, porque é tudo ao mesmo tempo agora”, afirmou Bodanzky. “O audiovisual é uma indústria, e uma indústria é uma grande engrenagem. Se não funciona uma parte, ela como um todo não anda". Mesmo assim, ela identificou ao menos quatro pontos essenciais:

1) Manutenção e olhar constante para políticas afirmativas. “Em todas as áreas e, no meu ponto de vista, isso engloba também a regionalização do audiovisual, para a gente não repetir o equívoco e ficar só no eixo Rio-São Paulo. Porque o Brasil é muito além disso”, explicou a cineasta, lembrando do êxito de Marte Um. O longa do diretor Gabriel Martins acompanha uma família negra, moradora da periferia de Contagem, em Minas Gerais, em busca dos seus sonhos em um cenário político adverso — e, vale lembrar, tentou uma vaga no Oscar deste ano. "É um filme fora do eixo Rio-São Paulo, de uma produtora muito consistente, com uma equipe e um elenco pretos. Um filme popular, que foi muito bem nas salas de cinema, apontando que existe um cinema muito forte, interessante e diferente sendo feito em várias partes do país".

“Não dá para um país não ter um imaginário no audiovisual que seja correspondente a quem nós somos”, continuou. “A sociedade brasileira tem que estar representada na mesma proporção. Mas, além disso, [a política afirmativa] traz um cinema novo, com uma demanda muito reprimida de histórias diferentes e curiosas, e o cinema precisa de coisa nova o tempo inteiro. Então vem para o bem da nossa indústria. É o nosso diferencial”.


2) Manutenção do Fundo Setorial do Audiovisual. “Manter os valores arrecadados, previstos no orçamento anualmente, é fundamental”, defendeu. E aqui vale o parêntesis: o FSA é um fundo cujo objetivo é desenvolver toda a cadeia produtiva atrelada ao Audiovisual. Seus recursos vêm dos próprios agentes culturais do setor por meio de dois impostos, o Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional) e o Fistel (Fundo de Fiscalização das Telecomunicações), e um comitê gestor define e acompanha como eles serão aplicados anualmente.

3) Recuperação da cota de telas. “É impressionante. Quando a gente não tem cota de tela, mesmo tendo grandes filmes brasileiros e com bilheterias significativas, os blockbusters americanos entram e ocupam 98% das salas de cinema. Não dá. Tem que ter uma proteção da indústria local”, criticou Bodanzky, lembrando que se trata de uma obrigação legal que anualmente precisa da assinatura do presidente, algo que o Bolsonaro não fez em 2022 e cujos efeitos já são sentidos hoje.

4) Regulação do vídeo sob demanda. “Este, sim, é complexo e nós estamos muito atrasados. Ela tem que ser feita com urgência e, ao mesmo tempo, com cautela. Se a gente não fizer isso com atenção, usando outros países como exemplo, ao invés de fortalecer nossa indústria local, vamos escondê-la”, alertou, enfim.

Bodanzky não é a única a mencionar as plataformas de streaming como tópico prioritário. Antes da estreia de Marighella, em novembro do ano passado, Wagner Moura já havia pontuado a questão ao Omelete, ressaltando o aspecto restritivo que trabalhar com estas empresas poderia representar para o cinema brasileiro:

"O audiovisual brasileiro hoje sobrevive por conta das empresas de streaming. Isso é bom, porque as pessoas estão trabalhando e as produções estão rolando”, admitiu, antes de fazer sua ressalva. “Por outro lado, isso limita. Quando você começa a ter que responder a uma plataforma sobre o que fazer, você perde o que faz do cinema brasileiro o cinema brasileiro. Essa liberdade criativa de poder pensar o Brasil sem que ninguém te diga 'melhor não falar disso'. Nosso cinema é o cinema independente, não existe outro. É esse cinema que a gente tem que retomar daqui para frente".

No entanto, Marina Rodrigues, produtora-executiva com foco em políticas públicas para o audiovisual e apresentadora do podcast Simplificando Cinema, enxerga impactos além do criativo. A dependência e a falta de regulamentação dos streamings implica, primeiro, em uma queda na geração de empregos. Considerando o período entre 2008 e 2018, quando ela ainda classificava o FSA como um “bom fundo” no quesito montante, Rodrigues lembrou que foram produzidas quase duas mil obras no Brasil. “A Netflix tem os mesmos 10 anos no país, e só agora eles chegaram no número de 40 obras realizadas. Não tem como ela gerar 300 mil empregos, como o FSA fez durante 10 anos. Ela vai se concentrar em duas ou três obras no máximo e, com muita sorte, renovar uma delas para uma nova temporada”.

Em um cenário de cancelamento, a produtora brasileira contratada — geralmente as maiores e mais tradicionais, dada as exigências de equipamento das plataformas — e o criador também perdem. "A obra vai ficar lá [na plataforma]. É do domínio dela, porque ela exige que todos os direitos sejam transferidos para ela. Então, você fica sem esse dinheiro, enquanto elas estão lucrando muito".

Rodrigues ressalta que isso não quer dizer que seja contra os streamings. Na realidade, ela concorda com Moura sobre eles serem o que impediu o Brasil de lidar com uma crise maior no setor. Para ela, trata-se apenas de uma questão de incluir a base da força de trabalho — e, no fundo, acredita que a regulamentação poderia ser vantajosa para eles também. "Com as plataformas pagando um [imposto semelhante ao] Condecine para o FSA", exemplificou, "elas poderiam entrar como coprodutoras e/ou codistribuidoras de um projeto, e aí a questão do orçamento não seria só delas. Elas teriam a possibilidade de captar recursos para o projeto brasileiro de outras fontes".

"Streaming pagando imposto existe em vários lugares da Europa, aqui tem que ter também. E se daqui há 10 anos existir uma outra coisa que não seja streaming, vai passar por todo esse processo de novo, como foi com a TV a cabo", concluiu, pontuando que este é uma parte natural do desenvolvimento da própria indústria.

SEM ESPAÇO PARA MAMATA

A questão toda é que, por trás de cada título, há uma legião de trabalhadores envolvidos. Tome a produção de um longa, por exemplo. Mais do que o diretor, o roteirista e o elenco, isto é, os cargos de maior visibilidade, uma única obra emprega centenas de pessoas. São técnicos de som e luz, maquiadores, figurinistas — isso sem mencionar o impacto indireto no setor de serviços com a contratação de motoristas, serviços de buffet e hospedagem. Quer dizer, estamos falando de mão de obra que, como tantas outras, vai consumir alimentos, remédios, energia e cultura mensalmente, movimentando a economia do país. O produto do seu trabalho, por sua vez, movimenta também o consumo. Afinal, para ir ao cinema, você paga pelo transporte, pela pipoca e, claro, pelo ingresso. E, em um tudo isso, incide um imposto. Ou seja, um filme traz retornos tanto para o governo, quanto para a sociedade.

Em resumo, trata-se de um ecossistema econômico relevante, aqui e no mundo inteiro, e como toda a indústria, precisa de um apoio governamental. Em outras palavras, os incentivos não são exclusivos ao setor de entretenimento — embora exista uma diferença, como ressaltou Bodanzky: “você tem nas outras áreas da economia o mesmo mecanismo, mas você não tem contrapartida social", uma exigência a todo projeto inscrito na Lei Rouanet, por exemplo —, e tampouco são exclusivos do Brasil, como explicou Rodrigues. “Se você não fica até o final dos créditos de um Homem-Aranha para ver a tal cena, você não descobre que o filme tem incentivo público. Porque não mostra no início dos créditos, é algo que a América Latina fez diferente dos Estados Unidos e de alguns países da Europa”.

Dito isso, quais são as principais leis de incentivo que beneficiam o nosso audiovisual? Conheça-as a seguir:

LEI DO AUDIOVISUAL

O QUE É?: Lei de incentivo focada em obras cinematográficas e audiovisuais nacionais, considerando sua produção, infraestrutura e exibição.

VIGENTE DESDE?: 1993

POR QUE EXISTE?: “A Lei do Audiovisual foi lançada justamente porque a Rouanet não estava dando conta de abraçar todos os projetos”, explicou Rodrigues. “Então se criou uma lei específica somente para o audiovisual para que as pessoas pudessem fazer filmes, séries e curtas com mais um braço de incentivo. Isso porque a Rouanet não incentiva longa-metragem, mas curtas, documentários e festivais de cinema, sim”.

COMO FUNCIONA?: O processo é muito parecido com o da Lei Rouanet, conforme descreveu Rodrigues: “você inscreve seu projeto na Ancine e uma comissão o analisa. Se estiver tudo certo e for interessante para o país, a Ancine o aprova. Mas ela não vai te dar o dinheiro. Você vai ter que captar através das empresas”.

TRADUZINDO: Basicamente, depois da aprovação, você bate de porta em porta, apresentando para as empresas seu projeto, o orçamento estimado e, claro, o ok da Lei do Audiovisual, e tenta convencê-la a patrociná-lo. Se ela topar, o dinheiro que vai para seu projeto é deduzido do imposto de renda dela — um valor que pode chegar a 4% do IRPF. Ou seja, todo mundo sai ganhando: você consegue o investimento para viabilizar seu filme e a empresa tem o abatimento fiscal e a publicidade por estar associada ao projeto. Afinal de contas, o logo dela estará nos créditos iniciais da produção.

Mas não para por aí: a empresa pode ainda ganhar em cima do projeto, dependendo de como se desenrolarem as negociações. “Você pode, por exemplo, estabelecer uma divisão de 60/40 em cima da bilheteria ou dos licenciamentos da obra posteriormente”, continuou Rodrigues. “Tem também uma linha mais direta, em que a empresa atua como uma ‘doadora’”, disse, comparando a modalidade com a maneira como pessoas físicas declaram doações a instituições e causas no seu imposto de renda, ou seja, têm o desconto e só.

LEI ALDIR BLANC 2

O QUE É?: Lei que presta apoio orçamentário a estados e municípios, destinando recursos para atividades culturais variadas, desde a manutenção de patrimônios e acervos ao financiamento da formação, criação e distribuição das artes.

VIGENTE DESDE?: 2022

POR QUE EXISTE?: Nasce, primeiro, como resposta à pandemia para prover recursos para os trabalhadores e as empresas impactados pela paralisação do setor cultural, como aconteceu em outros lugares do mundo. Seu efeito positivo, no entanto, mostrou que era uma boa ferramenta de descentralização dos recursos e de planejamento a médio prazo, e assim a Lei Aldir Blanc deixou de ser emergencial e se tornou anual, por um período de 5 anos. Depois disso, ela será analisada novamente, podendo ser renovada.

COMO FUNCIONA?: Diferentemente da Lei Rouanet, é um recurso direto. Em outras palavras, "ao invés de você fazer seu projeto e esperar a comissão aprovar para começar a captar, aqui quando a comissão aprova, já vem a verba", pontuou Rodrigues. Estas comissões, porém, são estaduais e municipais. Então, o montante aprovado para a Lei Aldir Blanc 2 é dividido pela federação, e cada ente têm a autonomia para formar tais comissões e criar os editais que vão distribuir esses recursos.

LEI PAULO GUSTAVO

O QUE É?: Lei emergencial que abarca todas as áreas da cultura, mas foca especialmente no audiovisual, que recebe 75% dos seus recursos.

VIGENTE DESDE?: 2021

POR QUE EXISTE?: Como a Aldir Blanc 1, ela surge como resposta aos danos que a pandemia causou no setor cultural. Mas sua execução foi prorrogada pelo STF para até 31 de dezembro de 2023 para garantir seu cumprimento

COMO FUNCIONA?: O saldo do Fundo Nacional de Cultura, avaliado em mais de R$ 3,8 bilhões, é repassado uma única vez aos estados e municípios para o cumprimento de ações emergenciais do setor cultural, e o apoio pode vir por meio de editais, chamamentos públicos, prêmios e mais.

Vale dizer que a atenção especial ao audiovisual se deve ao fato de que boa parte desse montante vem de um tributo chamado Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional) e, portanto, iria originalmente para o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA)

A grande preocupação com estes três incentivos e a Lei Rouanet é a fiscalização, e que não fique dúvidas: é legítimo. Porém, a desconfiança ao redor destes mecanismos nasce muito mais de uma falta de compreensão de como funcionam do que de fato ocorrências. Desde as controvérsias ao redor da captação de Chatô - O Rei do Brasil, nos anos 1990 — quando tanto a Rouanet quanto a Lei do Audiovisual ainda eram bastante novas —, as políticas públicas foram aperfeiçoadas para evitar novos casos como aquele.

Hoje, se você inscrever sua produtora na Ancine para captar recursos para um projeto, mas

for relativamente novo no mercado, você não terá o mesmo teto de captação que uma empresa mais consolidada e com um portfólio grande. Existe uma gradação, ou seja, conforme você vai ganhando experiência e comprovando para a Ancine que tem responsabilidade fiscal, o orçamento aprovado para seus projetos também vai crescendo — é claro, desde que o custo seja justificado.

Além disso, todas as produtoras, independentemente do tamanho e do segmento artístico, precisam fazer uma prestação de contas minuciosa. “Você vai pegar todas as notas fiscais, inclusive dos R$ 2 da água que você comprou no mercadinho da esquina para a equipe”, disse Rodrigues. Se todas as suas despesas corresponderem ao orçamento aprovado pela lei de incentivo, muito bem: está tudo certo! Mas e na ocasião de você ter gasto menos? “O resto do dinheiro você devolve para o governo, que vai colocar no Fundo Nacional de Cultura (FNC)”, explicou a produtora-executiva, usando como exemplo um espetáculo musical aprovado pela Rouanet. “Em nenhum momento o governo vai falar para você ‘poxa, fica com esse dinheiro para você se divertir’. É contra a Lei de Responsabilidade Fiscal”.

No FNC — que contempla o FSA —, o recurso será redistribuído para outros projetos culturais, e somente para eles. "O governo não pode dizer 'ah, vou usar essa quantia para financiar a compra de livros para a Educação'. Isso também vai contra a Lei de Responsabilidade Fiscal. Se está ali, o dinheiro precisa ser usado para a Cultura", garantiu Rodrigues.

Agora, e no caso do valor gasto ultrapassar o que foi aprovado? "É como se você pegasse um empréstimo do banco e não pagasse: o banco vai te cobrar aquilo ali. E você corre o risco de ficar até inabilitado", respondeu Rodrigues. "Então, se as contas não baterem e ficar comprovado que você roubou ou desviou o dinheiro, no próximo ano, você não pode inscrever projeto nenhum ali com o seu nome, nem com a sua empresa".

UM PASSO DE CADA VEZ

Quer dizer, a burocracia pode ser uma boa ferramenta para garantir a transparência e o cumprimento das normas. No entanto, é preciso cuidado para que não seja exageradamente complicada e, como resultado, impeça as engrenagens de rodarem. Afinal, a ideia por trás da política pública é o fomento, e não a paralisação. Por isso, o Ministério da Cultura já se propôs a desfazer alguns dos desmontes da gestão Bolsonaro.

Em 23 de março, o governo publicou no Diário Oficial da União um decreto regulamentando novas regras para políticas públicas culturais, incluindo as Leis Rouanet, Aldir Blanc e Paulo Gustavo. A ideia, de acordo com a ministra Margareth Menezes, era “harmonizar as regras”, juntando o que há de melhor em cada mecanismo de incentivo, além de reforçar procedimentos de prestação de contas da Paulo Gustavo. Ou seja, garantir clareza nas obrigações e deveres dos agentes culturais.

No entanto, o decreto foi além, demonstrando que os diagnósticos do setor audiovisual, mencionados por Bodanzky, já começaram a ser abordados. Agora, os mecanismos deverão ter “medidas de democratização, descentralização e regionalização do investimento cultural”, o que, no bom português, quer dizer não ficar só no eixo Rio-São Paulo e de fato ter um impacto positivo no país todo. Há, ainda, a inclusão do dever de estimular ações afirmativas para promover a diversidade e combater preconceitos, e a garantia de desclassificação de qualquer projeto que discrimine um grupo minoritário.

O decreto contempla, portanto, apenas uma das quatro áreas prioritárias apontadas por Bodanzky, mas já é um começo. Da mesma maneira, este especial é só a ponta do iceberg de uma discussão maior e mais complexa, que deve se estender ainda por muito tempo no Brasil. Encare-o como uma espécie de convite para que todos nós, enquanto cidadãos e consumidores de cultura, continuemos a conversa daqui em diante. Afinal de contas, este novo momento de retomada, ou como quer que você queira chamá-la, também depende da participação ativa de todos. Cobrando transparência, sim, mas também considerando a relevância simbólica e econômica da indústria cultural.

Publicado 11 de Abril de 2023
Edição: Beatriz Amendola | @bia_amendola
Reportagem: Mariana Canhisares | @maricanhisares
Direção de arte: Jessica Justino | @pipocaartistica
Direção de arte: Mariana Zordan | @marianazordan
Direção de arte: Lucas Ferreira | @FerreiraLuucaas
Coordenação: Jorge Corrêa | @jorgecorrea_