Domingo começou no maior bom humor no Festival de Cannes à força das peripécias de um Ryan Gosling com ares de Renato Aragão e de um Russell Crowe metido a palhaço em Dois Caras Legais, uma chanchada policial de ritmo contagiante, que não deixa nem o riso nem a adrenalina se perderem a cada sequência, sob a direção cirúrgica de Shane Black, que exibiu a produção em sessões hors-concours no festival francês. Com um enredo de investigação ambientado os EUA dos anos 1970, a trama parte de uma jovem mocinha que desapareceu e de uma atriz pornô que foi encontrada morta: ambas tinham conexão com um filme X-Rated (inadequado para menores) que pode revelar podres de muita gente importante na cidade. Eis que um detetive particular, Holland March (Gosling, hilariante), e um jagunço de aluguel que quebra narizes por dinheiro, Jackson Healy (Crowe), vão unir forças para desvendar o caso. A pergunta ao fim da sessão foi: se Cannes valoriza tanto diretores autorais de filmes de gênero, por que Black não foi escalado para concorrer? Seu longa é uma homenagem eletrizante ao cinema de ação dos anos 1970 e 80.
“A ideia que me guiou foi um amor pelos filmes de detetive dos anos 1950 e 60 e o desejo de poder reproduzir aquela dinâmica. O script nasceu em 2001, chegou a ser oferecido como projeto de série para a TV, mas, 14 anos depois, ganhou corpo. Apesar de eu ter usado câmeras digitais e efeitos de CGI, o filme tem um perfil vintage, com a cara da década que retrata”, disse o cineasta durante uma coletiva para a TV francesa, cercado de seus dois astros, que não paravam de implicar um com o outro, como colegas de escola.
“Eu podia ser o Batman e Russell o Robin”, brincou Gosling.
Sempre acompanhado de um cigarro eletrônico, fumando pela Croisette afora, Black pagou caro o preço de ter sido o roteirista mais bem pago de Hollywood nos anos 1980 e início de 1990, mas vem dando o troco filmando (e ainda escrevendo) o que bem quer, vide The Nice Guys. Não é qualquer nome na Meca da indústria do audiovisual com cacife para ter Ryan Gosling e Russell Crowe juntos, pagando mico, numa versão ébria e chapada dos anos 1970. Mas depois do fenômeno de bilheteria que Homem de Ferro 3 tornou-se, faturando US$ 1,2 bilhão mundo afora tendo Black como realizador.
“Os filmes andam muito monocromáticos: ou são secos e sombrios ou são engraçadinhos e leves. Tentei misturar os tons em Dois Caras Legais. Temos momentos de sombras, mas também de ternura”, disse o diretor à imprensa europeia.
Cannes recebeu Dois Caras Legais calorosamente, numa projeção mergulhada em gargalhadas do começo ao fim, com direito a aplausos a Gosling durante a projeção. Agora, a Croisette, sob o impacto da precisão e da elegância nos enquadramentos do longa, tenta entender melhor a cabeça criativa de Black, que, três décadas atrás, deu ao cinema de ação novo direcionamento, distanciando o filão de seu parentesco com o faroeste e aproximando-o de uma elegância noir ainda bruta, mas cheia de charme. E fez tudo isso quando tinha apenas 22 anos, ao conceber o roteiro de Máquina Mortífera (1987), com Mel Gibson e Danny Glover.
Naquela época, com a primeira aventura do detetive Martin Riggs e do sargento Roger Murtaugh, Black introduziu no gênero o conceito do herói kamikaze, cuja disposição para morrer era tão grande quanto a aptidão (e a disposição) para matar. Seu gesto foi exemplar e rendeu frutos como Duro de Matar (1988), com Bruce Willis, redefinindo o conceito do heroísmo na tela grande ao trazer uma fratura psicológica para adicionar tridimensionalidade aos protagonistas. Não por acaso, o Tony Stark playboy e ébrio de Robert Downey Jr. na franquia do Vingador Dourado da Marvel caiu-lhe nas mãos, as de roteirista e as de diretor. E a escolha do estúdio Disney deu certo: seu Homem de Ferro 3 foi um fenômeno popular.
Porém, antes disso, por quase dez anos, entre 1996 e 2005, o nome dele foi um prenúncio de desastre para os produtores, graças ao fracasso de projetos como O Último Boy Scout (1991), nos quais gastou-se muito e faturou-se pouco. Para evitar acusações e deboches, ele saiu de cena. Mas resolveu voltar à cena fazendo algo mais do que roteirizar. Dirigir virou um verbo de ação para Black quando ele resolveu filmar as peripécias de um astro em crise (Downey Jr.) com um detetive gay (Val Kilmer): Beijos e Tiros. Foi uma premissa simples e rápida, para filmar com merrecas trocadas dos cofres da Warner, mas a encomenda saiu melhor do que se esperava. O projeto não faturou aos tubos, mas virou cult. Dali, ele recebeu o sinal verde para criar como quisesse, sendo até chamado para a TV, via Amazon Studios, para rodar um western: Edge (2015). Agora, com Dois Caras Legais, Black prova ser um dos grandes.
Em paralelo à sessão de Dois Caras Legais, Cannes recebeu mais um dos 21 concorrentes à Palma de Ouro: o francês Mal de Pierres, dirigido pela também atriz Nicole Garcia. O enredo é um convite ao exagero melodramático: Marion Cotillard vive uma mulher infeliz no casamento que descobre a paixão nos braços de um ex-veterano da Guerra da Indochina, vivido por Louis Garrel. Até agora, nenhum concorrente à Palma de Ouro foi mais aplaudido do que The Handmaiden, novo longa-metragem do sul-coreano Park Chan-Wook, o mesmo do cult OldBoy (2004). O cineasta surpreendeu a Croisette com o clima de tensão deste thriller erótico sobre a paixão entre duas mulheres, de classes sociais distintas, na Coreia dos anos 1930, sob jugo japonês. Elogios cercam ainda dois outros concorrentes: o drama I, Daniel Black, do inglês Ken Loach, e a comédia Toni Erdmann, da alemã Maren Ade, que fez de Sandra Hüller a primeira candidata de peso ao prêmio de melhor atriz.
Fora da seleção oficial, na seção paralela e competitiva Semana da Crítica, uma pequena produção francesa, de uma cineasta estreante, virou, da noite para o dia, um ímã de elogios, tornando-se um dos títulos de maior (e melhor) boca a boca do balneário: Grave, de Julia Ducornau. Na trama, uma jovem vegetariana de 16 anos é obrigada a comer carne crua. A experiência vai deflagrar descobertas existenciais perigosas para ela… e para os outros. Nesta segunda, na vitrina Cannes Classics, a Croisette recebe Cinema Novo, de Eryk Rocha, que pode render ao cineasta carioca o troféu L'Oeil d'Or, dado ao melhor documentário do festival. No longa, o diretor carioca explora a herança estética e politica do movimento que propôs uma revolução da imagem e da representação do Brasil na telona, entre 1962 e 1969, a partir de uma discussão de nossas contradições.
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