Há poucos lugares do mundo em que um cineasta tem recepção de ídolo pop. Os festivais de cinema são um desses espaços, como provou a passagem de Woody Allen pelo tapete vermelho, na apresentação de Coup de Chance (“golpe de sorte”, na tradução literal), exibido fora de competição. O diretor deu autógrafos para os fãs e recebeu aplausos em pé antes mesmo do início da sessão de gala. Na exibição para a imprensa, na manhã da segunda-feira (4), a aparição de seu nome nos créditos iniciais também gerou aplausos entusiasmados. Só David Fincher provocou o mesmo tipo de reação. Na coletiva de imprensa, também, Allen foi bastante aplaudido.
Claro que Woody Allen tem alguns grandes filmes e é um nome conhecido entre quem aprecia cinema. Porém, a recepção tão calorosa pareceu quase uma reação ao cancelamento sofrido pelo cineasta de 87 anos, acusado por sua filha adotiva Dylan de abuso sexual.
Claro que não foram só aplausos. Um grupo protestou contra a presença de Woody Allen no festival durante o tapete vermelho de Coup de Chance, assim como as de Roman Polanski, que não esteve em Veneza, mas exibiu The Palace fora de competição, e de Luc Besson, que disputa o Leão de Ouro com Dogman. Os três são nomes polêmicos. Polanski fugiu dos Estados Unidos em 1978 ao saber que o juiz ia revogar o acordo em que ele admitiu sexo ilegal com menor em troca do cumprimento da pena em liberdade – ele foi acusado de drogar e estuprar uma garota de 13 anos. Há outras acusações de abuso sexual contra Polanski. Besson foi inocentado em junho de uma acusação de estupro. Outras mulheres também o acusaram de comportamento sexual inapropriado.
Woody Allen foi acusado de estuprar Dylan, sua filha adotiva com a atriz Mia Farrow. Ele nunca foi indiciado e nega o crime. O relacionamento do diretor com Soon-Yi Previn, filha adotiva de Mia Farrow com seu segundo marido, André Previn, que começou quando ele ainda era casado com a mãe de Soon-Yi, também é motivo de controvérsia. Allen e Soon-Yi casaram-se em 1997, em Veneza. Ela esteve ao lado do marido no tapete vermelho com Coup de Chance, assim como as duas filhas do casal.
Atores americanos que trabalharam com Woody Allen em seus longas mais recentes se viram obrigados a defender sua presença no elenco ou até se desculpar por elas. Timothée Chalamet, Rebecca Hall e Selena Gomez doaram os cachês recebidos por participações em produções do cineasta para organizações não-governamentais. Em sua autobiografia A Propósito de Nada, Allen disse que a atitude do ator foi tomada por causa de sua campanha para o Oscar por Me Chame pelo Seu Nome.
Coup de Chance, rodado em Paris, com elenco francês, é resultado do cancelamento. Woody Allen já tinha rodado na capital francesa antes, assim como em Roma, Londres e Barcelona, mas agora tem dificuldades de conseguir financiamento para filmar em sua cidade, Nova York. É, porém, seu primeiro filme rodado em outra língua, no caso, o francês. “Eu tenho uma boa ideia para voltar a filmar em Nova York, se algum financiador sair das sombras. Mas ele tem de concordar em não ler o roteiro nem opinar sobre o elenco”, afirmou o diretor.
Controvérsias à parte, Coup de Chance é o melhor filme de Woody Allen desde Blue Jasmine (2013). Ele tem graça e charme, embora recorra a alguns temas já batidos do diretor, como infidelidade, acaso e crime. A trama: Fanny (Lou de Laâge) é casada com Jean (Melvil Poupaud), um homem popular e endinheirado. Andando na rua em Paris, ela reencontra Alain (Niels Schneider), seu colega de escola. Alain representa uma fase mais simples e autêntica de sua vida. Os dois se aproximam e começam a ter um caso, o que coloca Fanny em perigo, dado o ciúme do controlador Jean.
Como se vê pela trama, nada de novo no mundo de Woody Allen, que já fez vários filmes sobre acaso e sorte. “Tive muita sorte minha vida toda. Tive dois pais amorosos, duas filhas, nunca estive no hospital, mesmo prestes a fazer 88 anos”, disse Allen na coletiva, deixando de lado Moses e Dylan, seus filhos adotivos com Mia Farrow, e Ronan, seu filho biológico com a atriz, autor de diversas reportagens sobre abuso e assédio sexual e defensor de sua meia-irmã Dylan. Allen continuou: “Quando comecei a fazer filmes, as pessoas enfatizaram o que eu fazia bem e não criticaram o que fazia mal. Tive muitos elogios não-merecidos. Espero que continue. Claro que ainda estamos no começo da tarde, mas até agora tenho tido sorte”.