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Festival do Rio | "O mal é uma forma de legitimar injustiças", diz a diretora do filme argentino no Oscar, Zama

Lucrecia Martel fala ao Omelete sobre sua esperada volta à direção

08.10.2017, às 23H05.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H37

Uma das diretoras mais festejadas do mundo por sua obra autoral centrada em submissões e em contenções, a argentina Lucrécia Martel está no Brasil para exibir Zama no Festival do Rio, a partir deste domingo. É o primeiro longa da diretora em quase dez anos, desde A Mulher sem Cabeça, que havia sido exibido em 2008 no próprio festival carioca.

O mexicano Daniel Giménez Cacho assume o papel- título de Zama: um inspetor da Coroa de Espanha que fiscaliza irregularidadades na Argentina colonial do século XIX. A presença de um temido bandido nas redondezas vai levar Zama à ação. Matheus Nachtergaele e Mariana Nunes integram o elenco do longa-metragem, coproduzido por Vânia Catani (de O Palhaço). Na entevista a seguir, ao Omelete, Martel fala sobre essa imersão no passado de sua pátria num projeto elogiado em sua passagem pelo Festival de Veneza e escolhido pelos argentino para brigar por uma vaga na disputa pelo Oscar de filme estrangeiro em 2018.

Como você e o fotógrafo, Rui Poças, elaboraram a luz que recria a Argentina do século XIX?

Lucrecia Martel: Fugindo da solução mais habitual, que é usar velas e fogo. Era preciso conhecer o local em que filmamos para sugerir uma solução. E nós o fizemos, porque o cinema é uma questão de busca e de perverter uma visão estabelecida da realidade. Toda vez que eu tenho um bom sentimento, tenho a sensação de que algo errado se passa comigo, porque preciso me questionar. E questionar o mundo. Vivemos num continente no qual 60% da população está na faixa da pobreza. Mas se você pegar a faixa mais pobre da Argentina, entre povos indígenas, você verá que eles falam duas línguas. Uma realidade em que o indivíduo mais pobre de uma sociedade fala duas línguas, tendo duas culturas, não é algo que você pode tratar por clichês.

Zama é um funcionário da Coroa que testemunha toda sorte de deslize moral de suas autoridades enquanto espera ser transferido. A visão dele sobre corrupção parece bem próxima do cotidiano no Brasil. Essa semelhança é proposital?

Somos iguais nesse ponto: a corrupção. Sofremos igual. E este é um filme profundamente brasileiro, assim como é um filme profundamente argentino. Não vejo diferenças territoriais assim como não vejo diferenças entre bem e mal nos personagens. O mal é uma forma de legitimar injustiças. E o pior mal cometido em nosso continente não veio da parte das metrópoles. Quando nós nos tornamos independentes, aqui na América Latina, os nossos estados recém-formados legitimaram injustiças coloniais. Zama fala disso.

Como fica a campanha para o Oscar?

Mais importante do que isso é discutirmos o papel de um festival como o do Rio de gerar um pensamento continental capaz de legitimar por si só nossos filmes, sem necessitar do aval de Cannes, de Berlim, de Veneza. Se não gerarmos um mercado comum entre nós, latinos, estaremos repetindo erros históricos. Um filme latino não pode depender de elogios do New York Times pra ser considerado bom entre nós. Há alguns anos, o autor do romance que inspirou Zama, Antonio Di Benedetto, ficou super em alta na Argentina depois que recebeu uma resenha positiva do autor sul-africano J. M. Coetzee, ganhador do Nobel. Foi a primeira vez que um Nobel nos elogiou. Coetzee surpreendeu-se ao notar que os argentinos necessitaram ler uma resenha na New Yorker para reconhecer uma obra como a de Benedetto. Isso precisa mudar.

Depois de passar pelo Festival do Rio, Zama também integra a seleção da Mostra de Cinema de São Paulo, que começa no dia 19.

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