Filme brasileiro de maior visibilidade na Europa este ano, consagrado com dois prêmios em Cannes, Gabriel e a Montanha, de Fellipe Barbosa, chega primeiro ao país pelo Festival do Rio, que começou neste fim de semana. No filme, Gabriel Buchmann (João Pedro Zappa), um jovem economista, em viagem pelo mundo, depara com Morte no frio do Monte Mulanje, em solo africano. Na entrevista a seguir, Barbosa fala de sua própria jornada pela África.
Como você dimensiona todo o sucesso do filme no exterior?
Fellipe Barbosa: Estou em Montreal agora. Na França, Gabriel foi lançado com 70 cópias e foi programado em mais de 200 salas ao longo do lançamento. O filme chegou a 75 mil espectadores no fim de sua quinta semana em cartaz. Para um filme brasileiro é um grande feito. Se compararmos com números recentes de autores como [Philippe] Garrel, [Bertrand] Bonello ou [Sergei] Loznitsa, Gabriel fez mais espectadores. A crítica francesa foi impressionante, houve uma unanimidade rara. Gabriel foi o destaque principal da Cahiers du Cinéma, Le Monde, Libération, dentre outros. Os textos são profundos e reveladores, e me fizeram aprender sobre o filme que fizemos. Fiquei particularmente tocado pela evocação de Jean Rouch pelo crítico do Le Monde, e a sugestão de que fizemos um filme vudu. Gabriel ganhou 5 prêmios até agora: dois em Cannes (revelação do júri oficial e prêmio de distribuição da fundação Gan), dois em Lima (fotografia e júri ecumênico) e o prêmio da crítica em Bucareste. Não sei como justificar o sucesso fora do Brasil. Espero que seja por causa da qualidade do filme, e que isso seja também reconhecido no Brasil. Mas só o tempo dirá.
Quem é o Gabriel do teu filme e o quanto ele se aproxima do Gabriel real?
Gabriel do filme tem fome de vida. Ele tem pressa, como se sentisse que seu tempo é curto. Quer aproveitar ao máximo sua viagem, conhecer pessoas, fazer conexões. É um personagem repleto de contradições: sua fome de vida confunde-se com uma pulsão de morte, pois viver intensamente significa assumir riscos e aproximar-se da morte. Já o Gabriel da minha memória de infância era mais introvertido, tímido e observador. O que não significa que era outro Gabriel. Creio que ele é um personagem definido por sua multiplicidade justamente. Ele conjuga características que julgamos excludentes, mas não: podemos ser tão humildes quanto arrogantes, tão generosos quanto egoístas. De certo modo, ele é um personagem de resistência ao sectarismo maniqueísta de hoje em dia. Gabriel também é um personagem ingênuo, sem violência e sem cinismo, repleto de otimismo, ideais e sonhos. O fato de ele ser insuportável para alguns diz muito mais sobre nós do que sobre ele. Pregamos a não violência mas reproduzimos constantemente essa violência nos filmes, atendendo às expectativas do público. Personagens como Gabriel são cada vez mais raros, como se não coubessem mais nesse mundo.
Que novas perspectivas estéticas esse filme abriu para você como engenharia de filmagem?
O método que utilizamos - filmar nos verdadeiros lugares onde Gabriel esteve, com as mesmas pessoas que ele encontrou - foi também a única maneira possível de fazer esse filme. Não tínhamos estrutura para fazer um casting em quatro países, ao longo de 7 mil quilômetros. Então nosso método foi uma regra necessária. Fiquei muito feliz com o resultado do trabalho com os personagens reais africanos, muitos dos quais nunca haviam entrado num cinema. Eles tinham uma pureza fácil de lapidar e bonita de ver. Joao Pedro Zappa e Carol Abras foram essenciais nesse jogo, muitas vezes dirigindo a cena de dentro, pois eles tinham controle do texto, enquanto os atores africanos não tinham acesso ao roteiro. No processo, percebemos que é possível fazer um filme dessa maneira, agregando técnicas documentais à ficção, com equipe mínima de 16 a 18 pessoas, o máximo que cabia dentro de um caminhão. A equipe pequena foi também uma maneira de dilatar a filmagem, que durou 70 dias. Com o orçamento que tínhamos, seria impossível filmar tanto tempo com uma equipe tradicional de ficção, que é muito maior normalmente. Talvez a maior lição da filmagem foi algo dito por Pedro Sotero, nosso diretor de fotografia que chegou ao topo do Kilimanjaro apesar de ser asmático. Segundo ele, "pole pole" ("devagar devagarinho" em Swahili), podemos chegar a qualquer lugar.
Gabriel e a Montanha terá sua primeira exibição no Festival do Rio no dia 11. Depois, o longa chega ao circuito em 2 de novembro. Assista ao trailer: