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A Espiã

Paul Verhoeven sequestra o gênero da espionagem para fazer um filme autoral sobre identidade

10.01.2008, às 18H00.
Atualizada em 06.11.2016, ÀS 16H04

Quando Alex Murphy vira um policial de lata em RoboCop, ele deixa de ser Alex Murphy? Quando Sebastian Caine adquire invisibilidade em O Homem sem Sombra, ele se torna outra pessoa? Quando Douglas Quaid descobre em O Vingador do Futuro que estava sendo enganado por si mesmo, ele deixa de ser Douglas Quaid?

Questões de identidade são uma constante nos filmes do cineasta holandês Paul Verhoeven. Normal que essa discussão se imponha também em A Espiã (Zwartboek), o seu primeiro trabalho produzido e falado em holandês desde O Quarto Homem, de 1983. Quando a judia holandesa Rachel (Carice van Houten), protagonista de A Espiã, adota o nome de Ellis e se infiltra entre os alemães para ajudar a resistência holandesa na Segunda Guerra Mundial, ela deixa de ser Rachel?

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A crise de consciência é o cerne do processo de transformação da morena Rachel na loira Ellis - transformação essa que Verhoeven registra com sua usual obsessão pelo mundano e pelo choque, na cena em que Carice pinta até os pêlos da vagina para enganar os nazistas. Nesse processo, o embate mais profundo acontece entre a sedução da assimilação (os alemães têm o dinheiro, as armas, o poder, o champagne e o chocolate que faltam aos holandeses) e o esforço de preservar a própria memória (Rachel viu sua família toda ser morta pelos nazistas antes de assumir o nome Ellis).

Memória, tanto pessoal quanto coletiva, é sinônimo de identidade para Verhoeven, nessa declaração de princípios que faz de A Espiã um longa bastante ético sobre questões fundamentais do Holocausto, como o colaboracionismo. RoboCop voltou a ser Alex Murphy quando teve sua memória reativada por resquícios materiais de sua velha casa. Douglas Quaid acertou-se com o passado também pela via da memória, que lhe havia sido apagada. Rachel/Ellis fará de sua memória - mais especificamente, o pingente com as fotos de sua família, em brilhante cena do filme - instrumento de reafirmação.

Pelo caminho ficam as intrigas, as conspirações, os tiroteios, os amores impossíveis, os inimigos que se faziam de aliados, os aliados que se faziam de inimigos... A Espiã trata de temas abstratos sem abrir mão de uma narrativa e de uma estrutura típica dos filmes de espionagem e de guerra. A revista francesa Les Cahiers du Cinéma deu um nome nos anos 60 para esses autores que infiltram idéias complexas em filmes digeríveis: cineastas-sequestradores. Verhoeven sequestra o filme de espião - da mesma forma como sequestrou, em sua longa temporada hollywoodiana, a ficção científica e a aventura espacial - para transmitir idéias de uma forma que o espectador médio, mesmo inconscientemente, compreenda.

Dos cineastas em atividade hoje no mundo, Verhoeven talvez seja o mais célebre sequestrador de gêneros, e com justiça. Em nome de uma discussão que não tem nada de simplista, A Espiã se apropria de esquematismos (a forma como o roteiro emenda reviravoltas chega a ser abusada) sem o menor pudor. Ao fim de uma primeira impressão, seria fácil dizer que o filme é apenas mais um sobre a Segunda Guerra Mundial, mas nada estaria mais longe da verdade.

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