Em uma das cenas mais memoráveis de A Bruxa, Mercy (Ellie Grainger) finge ser a feiticeira que, reza a lenda, se esconde pelas florestas da Nova Inglaterra onde a família é obrigada a viver após ser expulsa de seu vilarejo. A irmã mais velha da personagem, Thomasin (Anya Taylor-Joy), bota fim na brincadeira sem demora, mas em retrospecto a cena adquire algo de agourento - toda a família da menina, afinal, acaba sendo possuída e destroçada pela tal bruxa. Pois bem: olhar para a história da A24, produtora e distribuidora estadunidense que se tornou marca forte do cinema independente no país, não deixa de ser um pouco como assistir à jovem Mercy brincando de ser bruxa.
Fundada em 2012, por um executivo de Wall Street (David Katz) e dois produtores que já trabalhavam em outros estúdios independentes (David Fenkel e John Hodges), a A24 usou uma mistura implacavelmente eficiente de ótima administração de marca e visão clara dos impulsos consumidores de um público deixado de lado pelos grandes estúdios de Hollywood para se tornar, em pouco mais de uma década, uma grife que tem força para vender um filme sozinha - embora a presença de outros nomes reconhecíveis sempre ajude, caso eles não estejam lá a A24 tem o caminho para torná-los nomes reconhecíveis.
Encontrar a assinatura dessa grife foi um processo laborioso. O primeiro filme distribuído pela A24, As Loucuras de Charlie (2013), era uma comédia de mau gosto que tentava ressuscitar a carreira de Charlie Sheen com gracinhas vulgares autobiográficas. O segundo, Ginger & Rosa (2013), enveredou pelo drama de amadurecimento com Elle Fanning no elenco, mas passou despercebido. Já havia algo de ousadia estilística e crônica hipster debochada em Spring Breakers (2013) e The Bling Ring (2013), mas o processo de refinar as faíscas desses filmes em uma linha narrativa coesa, e uma estratégia de mercado que entregasse retornos consistentes, demorou anos de muita tentativa e erro.
Vale lembrar, por exemplo, que a A24 nem sempre foi a casa do “horror elevado” de Ari Aster e Robert Eggers. A Bruxa veio em 2016, e antes disso a produtora já havia tentado a mão em searas mais vulgares do gênero - vide o terrir de zumbis Vida Após Beth (2014), com Aubrey Plaza, e a nojeira Tusk: A Transformação (2016), de Kevin Smith. Da mesma forma, antes de dar a Brie Larson (O Quarto de Jack), Mahershala Ali (Moonlight), Youn Yuh-jung (Minari) e Brendan Fraser (A Baleia) os papéis que lhe valeram o Oscar, a A24 escorregou feio em tentativas de emplacar filmes bem “acadêmicos” com Charlize Theron (Lugares Escuros), Matthew McConaughey (O Mar de Árvores) e Jessica Chastain (Uma Mulher Exemplar).
De fato, por muito tempo, a estratégia da A24 se limitava a comprar e distribuir filmes pequenos e médios com grandes nomes colados a eles, bancando uma campanha que lhes desse alguma notoriedade - ao contrário do que faziam outras distribuidoras do ramo independente - e esperando pelo melhor. Há um valor nisso que não passou despercebido pela comunidade criativa de Hollywood, encantada com a possibilidade de um impulsionamento monetário para seus projetos desprezados pelos grandes estúdios, cada vez mais concentrados em franquias. E às vezes os filmes se conectavam com o público, faminto por algo de original e excitante, mas ainda palatável, nas salas de cinema.
Talvez percebendo esse reconhecimento de mão dupla, a A24 se moveu para a produção de seus próprios filmes com a ideia óbvia de recrutar e fomentar nomes que eles poderiam transformar em suas versões de “astros e estrelas” de Hollywood. Aí entra Aster e seus terrores psicossexuais, Eggers e seu horror rústico e erudito, Trey Edward Shults (Ao Cair da Noite, As Ondas) e seu humanismo oblíquo, os irmãos Safdie (Bom Comportamento, Joias Brutas) e sua energia maníaca, David Lowery (Sombras da Vida, A Lenda do Cavaleiro Verde) e sua perversão do drama Malick-iano, Ti West (que deu ao estúdio sua primeira franquia com X: A Marca da Morte) e sua paixão por hipsterizar chavões de gênero, Alex Garland (Ex Machina, Guerra Civil) e seu sci-fi cheio de preocupações neuróticas com questões contemporâneas, e por aí vai.
Este é um processo que continua até hoje (os Daniels, Celine Song, os irmãos Phillippou, Julio Torres e Rose Glass estão entre as novas apostas do estúdio), e é claro que é fascinante ver a elevação de cineastas e de seus cacoetes de estilo e obstinações temáticas ao status de capital cultural tão importante quanto, digamos, a popularidade de uma Scarlett Johansson ou ou prestígio de uma Meryl Streep. É em parte por entender e atiçar a obsessão de um público apaixonado por cinema que a A24 é tão boa em vender seus filmes e seus talentos, e só quem compartilha desse tipo de obsessão seria capaz de entendê-la tão precisamente.
A A24 convenceu os cinéfilos de Letterboxd de que é “um deles”, e com certeza uma parte importante disso é que… bom, muita gente que trabalha por lá provavelmente é mesmo. E tem sido um exercício instigante ver como esses gostos se traduzem em uma biblioteca de produção e distribuição que cada vez mais cria uma espécie de “poder paralelo” em Hollywood, contrapondo o impulso de franqueamento dos grande estúdios com uma ideia geniosa: e se o artista fosse a franquia? É o conceito central do estúdio, e há uma parcela do público que devora esse conceito com voracidade, é claro.
Acontece que os grandes poderes comerciais do cinemão estadunidense estão começando a notar, e a própria A24 (agora comandada só por Katz, e transparente na vontade de produzir cinema cada vez mais comercial) está se tornando cada vez mais parte do status quo. Nesse contexto, vale lembrar que A Bruxa deu, lá atrás, um aviso sombrio sobre o futuro de quem finge ser algo que não é - enquanto ela funciona, no entanto, não dá para negar que é uma brincadeira deliciosa.
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