Na tarde de ontem (12), uma notícia abalou o mundinho do cinema e apontou para uma tendência que pode transformar Hollywood radicalmente - e não, não estamos falando da nova atriz de Moana ou do trailer de Paddington 3. No caso, a novidade em questão é a compra da cadeia de cinemas Alamo Drafthouse, uma das maiores dos EUA, pela Sony Pictures Entertainment. Mas o que a gente, aqui no Brasil, tem a ver com isso?
Bom, pode ser que de imediato a nova administração de uma empresa estadunidense não mude nada para o cinéfilo brasileiro - mas, a longo prazo, a notícia pode ter consequências catastróficas, e nós explicamos o motivo a seguir.
Que rolê é esse?
Antes de qualquer coisa, vale dizer: por mais de 70 anos, entre 1948 e 2022, essa aquisição da Alamo pela Sony seria… bom, estritamente ilegal. Isso porque a Suprema Corte dos EUA decidiu, poucos anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, que os estúdios de Hollywood como existiam na época constituíam um monopólio, violando assim as leis antitruste do país.
Embora a Suprema Corte tenha passado a decisão de como lidar com este fato para tribunais menores, no fim das contas (e graças à intervenção providencial do magnata Howard Hughes - ele mesmo, o protagonista de O Aviador interpretado por Leonardo DiCaprio) os estúdios tiveram que vender as múltiplas cadeias de cinema que administravam na época e voltar a operar “apenas” como produtores e distribuidores de filmes. Ou seja, eles se tornaram as empresas que conhecemos hoje.
Acontece que, entre 2018 e 2020 (a saber, durante o governo Donald Trump), o Departamento de Justiça dos EUA quis revisar a decisão de 1948 e deu o parecer que “os réus remanescentes não estariam em condições de restabelecer o seu monopólio” caso as proibições fossem revertidas. E assim, em agosto de 2022, após um período de ajuste de dois anos, o Decreto Paramount - como ficou conhecida a decisão da Suprema Corte, por conta da Paramount ser o principal réu no caso - oficialmente deixou de valer.
Tá, mas por que isso é ruim?
Deixa eu te transportar para a Hollywood dos anos 1930 e 1940 - a época de clássicos como Casablanca, O Mágico de Oz, Drácula e inúmeros outros, sim, mas também o auge do que ficou conhecido como o studio system. Após algumas décadas de crescimento franco e não-regulado, a indústria do cinema se organizou ao redor de cinco grandes conglomerados (MGM, Paramount, Warner Bros., 20th Century Fox e RKO), que concentravam a maior parte da produção, distribuição e exibição de filmes por todo o território dos EUA.
Os três estúdios menores da época (Columbia, Universal e United Artists) replicavam esse esquema em escala reduzida - no sentido que faziam menos filmes, em sua maioria localizados em gêneros considerados “menores” como o terror e o noir, e lançavam-nos em menos salas. Isso, é claro, porque eram donos de menos salas. Em suma: com poucas exceções reservadas para exibidores independentes, cada cinema ao redor dos EUA só exibia os filmes de um único estúdio, que era o responsável pela administração do local.
Essa integração vertical do ramo cinematográfico significava, basicamente, que os estúdios tinham poder absoluto em Hollywood. E, para citar só uma repercussão desse poder concentrado, vale lembrar que na época os profissionais do cinema (atores, atrizes, diretores, roteiristas e muito mais) só conseguiam notoriedade na indústria caso assinassem contratos exclusivos com alguma dessas corporações.
Isso não só limitava as escolhas de projetos desses artistas, e portanto a variedade de filmes que eram financiados e lançados nos cinemas, como também criava um ambiente em que os estúdios podiam controlar a imagem e a vida pessoal de seus contratados em um nível inimaginável hoje em dia. Um ambiente onde acobertar abusos era muito mais fácil (Judy Garland que o diga), onde atores gays eram obrigados a se meter em casamentos de fachada (Rock Hudson foi um deles), onde “traços étnicos” de certas estrelas eram escondidos com maquiagem e cirurgias plásticas antes de suas estreias na tela grande (como aconteceu com Rita Hayworth, por exemplo).
E o que vai acontecer agora?
Tudo bem, a compra da Alamo Drafthouse pela Sony não garante que estamos vendo o nascimento de um novo studio system - os paradigmas sociais da atualidade são outros, as empresas que dominam o mercado do entretenimento também, e o streaming adiciona uma camada de complexidade à situação (a Netflix e o Prime Video, diga-se de passagem, já são donas de cinemas individuais nos EUA, embora nenhuma delas tenha comprado cadeias inteiras de exibição).
Os paralelos são numerosos o bastante, no entanto, para justificar um sinal de alerta. Afinal, o estabelecimento do studio system no começo do século XX em Hollywood foi consequência direta da pandemia de gripe espanhola de 1918, que quebrou as pernas dos exibidores independentes e os obrigou a considerarem com mais carinho as ofertas de grandes empresas de entretenimento que ofereciam uma “mão amiga”. Pois bem: em 2021, a Alamo Drafthouse havia declarado falência por conta das dívidas contraídas durante o auge da pandemia de covid-19.
A cadeia de cinemas reabriu alguns meses depois disso, mas claramente a recuperação pós-pandêmica não foi o bastante para garantir sua sobrevivência sem a ajuda da Sony. E, embora os chefões de ambas as companhias tenham garantido o seu comprometimento com “a experiência cinematográfica” no anúncio da aquisição, e tocado em todas as outras palavras-chave do momento (“Eles têm um respeito e entendimento profundo da habilidade do cinema de criar crescimento econômico e um impacto cultural duradouro”, disse a CEO da Alamo, Karrie League), cautela é a recomendação mínima quando se trata desses movimentos corporativos.
Enfim, que o momento é de transformação em Hollywood, diante de resultados de bilheteria decepcionantes e polêmicas internas quanto a novos formatos de distribuição e direitos trabalhistas, qualquer um poderia ter dito. Mas poucos poderiam prever, eu imagino, que estaríamos andando para trás ao invés de para frente.