A cada nova "ameaça" à experiência da sala do cinema - seja a popularização da televisão, do VHS, do DVD, da pirataria online, dos games - renovam-se as análises apocalípticas que predizem o fim da indústria da Sétima Arte como a conhecemos. Novas tecnologias sempre são acompanhadas de especulações sobre o futuro, afinal, e o cinema segue especialmente vulnerável a essas análises por ser uma arte que exige acima de tudo um aparato industrial e tecnológico para se manter.
O cinema não vai acabar; seria como dizer que a música em si está ameaçada a cada crise nova da indústria fonográfica. O que está mudando, sim, é a forma de consumir cinema, e essa transformação foi acelerada pela pandemia da Covid-19. Décadas atrás, os filmes levavam até anos para sair da sala do cinema e chegar à programação da televisão. No período da transição do VHS para o DVD, depois para o formato digital, esse intervalo já foi de seis meses, e hoje a chamada janela do home video respeitada por estúdios e exibidores é de três meses - entre as estreias nos multiplexes e a chance de ver esses mesmos filmes em casa. Esse intervalo agora diminuiu dramaticamente; um acordo fechado entre a Universal e a AMC nesta semana nos EUA, em meio à crise do novo coronavírus, reduziu a janela para 17 dias.
A AMC é a maior rede exibidora dos EUA, seguida pela Regal e pelo Cinemark, e está na ponta mais fraca do cabo de guerra hoje. Quando a Universal - estúdio que tem histórico recente de inovar em lançamentos multiplataformas - decidiu botar Trolls 2 direto no streaming em março, no início do isolamento da pandemia, a AMC anunciou que boicotaria os filmes do estúdio em suas salas. O ultimato levou ao acordo fechado agora, segundo o qual a AMC garante que exibirá as estreias da Universal, por três fins de semana seguidos, e em troca consegue parte da receita de locações digitais da Universal no PVOD ("video premium sob demanda", sendo "premium" as grandes estreias do estúdio na locação). Nos EUA, o PVOD cobrado pela Universal é de 20 dólares, para ver um filme por 48 horas, como no caso de Trolls 2. Um ingresso para adulto de filme 2D na rede AMC custa 14 dólares. Vinte dólares é o preço mais caro cobrado pela rede: uma entrada para adulto em IMAX.
Então, ir ao cinema ou não? Na matemática doméstica, tem que entrar o custo de bilhete para os filhos e agregados, além de deslocamento, refeições etc., e é só a primeira de muitas matemáticas feitas nessa nova relação com o consumidor. Em essência, os exibidores estão em desvantagem, seja pela pandemia, porque o hábito do público hoje privilegia a comodidade do streaming, seja pela força de mercado dos estúdios (como o novo monopólio da Disney, que força suas estreias às redes de cinema, ou o potencial fim nos EUA da lei antitruste que evita esses monopólios). A própria AMC estaria em situação financeira complicada, amenizada pela entrada recente de novos investidores. Em comparação, os pequenos exibidores e os cineclubes, que dependem da boa vontade dos estúdios e têm menos poder de barganha, ficaram numa situação mais aguda do que já estavam.
No curto prazo, a tendência é que estúdios como Warner e Paramount fechem acordos semelhantes, que permitam encurtar a janela durante a pandemia, e que a Disney imponha sua escolha às redes. A Netflix, que sempre viu resistência das redes de cinema aos seus lançamentos (não é vantagem para a AMC, por exemplo, colocar nas suas salas um filme que a Netflix logo em seguida estreia online), só tem a ganhar com os exibidores tradicionais fragilizados. A estreia de Mank, de David Fincher, na Netflix em outubro, dando início à sua possível campanha para o Oscar, vai servir de termômetro para dizer se as redes de cinema estarão mais abertas aos filmes do serviço, que no caso excepcional de O Irlandês conseguiu reduzir a janela para 26 dias e colocar o longa de Martin Scorsese num circuito limitado de cinemas antes da estreia no streaming.
O que vai definir por enquanto esse jogo é a extensão da pandemia. Dividir a receita do VOD com as redes de cinema, num primeiro momento, pode apertar mais as contas dos estúdios, porque normalmente a divisão de lucros (entre estúdio, produtores, exibidores) só é feita quando um filme está no final da sua jornada de lançamento, muitos meses depois da estreia nas telonas. No médio e no longo prazo, ao aceitar o acordo que privilegia o streaming, as redes de cinema estão cavando mais fundo a própria cova. A questão é em que medida essa cova é inevitável, numa realidade tecnológica e de consumo em que cada estúdio consolida seu próprio canal de streaming e qualquer lei antitruste na relação estúdio-exibidores está fadada a caducar.
No meio dessa discussão, já soa nostálgico defender a sala escura do cinema como o espaço sagrado de uma experiência sensorial. Se frequentar os cinemas hoje já é, em boa medida, um privilégio para quem tem acesso e pode pagar, isso tende a se aprofundar. No Brasil, onde o circuito exibidor se concentra nas capitais, nos blockbusters, e aliena milhões de pessoas que não têm acesso às salas de cinema, a expansão do streaming não é uma desvantagem.
Uma vez que o streaming se torna o protagonista da indústria, é possível até que os cinemas se voltem para nichos específicos, como as experiências de IMAX, drive-ins, de cineclubismo, de sessões VIP focadas na ostentação, do "próximo 3D". Há analistas que entendem esse potencial fim da era dos blockbusters (quando um filme de marketing inflacionado estreia maciçamente e precisa se pagar em um único fim de semana) como a oportunidade de que roteiros originais, ideias ousadas e novos cineastas prosperem num ecossistema digital que volta a depender do boca a boca mais paciente. Seria um desfecho bem-vindo do ponto de vista criativo, mas o pessimismo dá o tom e essa visão talvez soe tão ingênua hoje quanto decretar mais uma vez a morte da Sétima Arte.