Muitas facetas do documentário brasileiro já chamaram a atenção dos europeus no 68º Festival de Berlim: sexta, Karim Aïnouz falou de geopolítica em Aeroporto Central e, no sábado, Luiz Bolognesi discutiu etnocídio indígena com Ex-Pajé. Domingo é dia de debate sobre gêneros sexuais e transfobia, com a luxuosa participação da cantora Linn da Quebrada em Bixa Travesti, que será exibido no CineStar. A direção é do casal Claudia Priscilla (realizadora de Leite e Ferro) e Kiko Goifman (que rodou Atos dos Homens e FilmeFobia). Juntos, eles já haviam falado sobre representação do corpo em relação ao desejo homoafetivo e à cultura trans em Olhe Pra Mim De Novo, exibido na Berlinale em 2012. Mas o novo trabalho é uma apoteose de Linn na luta contra o jugo da heteronormatividade.
“Linn é um paradigma de corpo que se pensa travesti, que se vê como pessoa trans sem usar prótese de silicone”, diz Claudia. “Ela canta ser uma ‘mulher com pau’, o que abre precedentes para a discussão de um novo corpo. Precisamos repensar o que é homem e o que é mulher e entender que, entre uma ponta e outra, pode existir dezenas de novos gêneros”.
Conhecida por hits como "Enviadescer", a cantora participou do projeto no roteiro e na edição. “É um filme com ela, e não sobre ela”, diz Claudia. “Estamos vivendo tempos muito difíceis no Brasil, onde o lugar da arte é o da provocação e da reflexão, incluindo sobre a identidade gênero. A partir desta reflexão, podemos repensar a transfobia e a homofobia, ciente de que o Brasil é o país que mais mata travestis no mundo inteiro. Curiosamente, é o país que tem mais procura pelo sexo virtual de pessoas trans. O Brasil é essa confusão”.
Reconhecidos internacionalmente pela estrutura narrativa inventiva de seus filmes, Claudia e Kiko esgarçam a fronteira entre fato e ficção em Bixa Travesti. “Criamos situações em que a personagem pudesse desenvolver suas performances. A Linn aparece aqui como locutora de rádio. E tem toda uma história de ficção no meio”, promete Kiko.
Nesta segunda, a Berlinale confere o que pode ser o seu mais exótico concorrente ao Urso de Ouro em 2018: Season of the Devil, um musical com quase quatro horas de duração dirigido pelo filipino Lav Diaz, laureado aqui em 2016 por A Lullaby to the Sorrowful Mystery com o Troféu Alfred Bauer (que coroa invenção de linguagem). Seu novo trabalho, longuíssimo como lhe é peculiar, fotografado em preto e branco, vem sendo descrito como uma ópera rock sobre a opressão das milícias nas selvas das Filipinas. Misticismo e filosofia se fundem na obra do cineasta.
“As pessoas assistem maratonas de dez episódios de Game of Thrones e não reclamam disso. Por que um filme de quatro horas incomoda tanto?”, questionou o cineasta em um papo com o Omelete. “O tempo é o que cinema precisa ter de mais livre”.
Um evento em especial roubou a cena da Berlinale neste domingo: uma concentração de espectadores asiáticos, a maioria da China, com um ardor de torcida organizada, fez fila no Friedrichstadt Palast para aplaudir a continuação de um dos maiores blockbusters do Oriente: Monster Hunt. O primeiro filme da franquia, de 2015, faturou US$ 385 milhões só em território chinês. Na sequência, lançada aqui, o monstrinho Wuba conta com a ajuda de um trambiqueiro (Tony Leung, de Amor à Flor da Pele) para escapar de caçadores de criaturas mágicas. Calcadas em lutas de espada que desafiam a gravidade, as sequências de ação filmadas pelo diretor Raman Hui, de Hong Kong, injetaram adrenalina nas veias de Berlim, sem embotar a linha cômica.