Celebrizado no imaginário cinéfilo dos brasileiros por ter aberto as portas do mundo para o thriller pernambucano Aquarius, por ter dado ao Brasil o prëmio de melhor documentário por Cinema Novo e, de quebra, por servir de palco para protestos contra a saída da Presidenta Dilma Rousseff no Palácio do Planalto, o 69° Festival de Cannes chega ao fim amanhã sem ter cumprido a promessa de sua curadoria de que esta seria “uma edição sobre a família”, com retratos de distintas abordagens estéticas sobre conflitos parentais.
Ok, o tema se fez presente em muitos longas-metragens em concurso, a começar pelo primeiro concorrente exibido: o romeno Sieranevada, de Cristi Puiu. Depois, passou por cineastas de diferentes pesos, de mestres como o espanhol Pedro Almodóvar e seu Julieta; promessas como o canadense Xavier Dolan e seu Juste La Fin Du Monde; e descobertas como a alemã Maren Ade e seu Toni Erdmann, comédia que agradou a todos e já ganhou o prêmio da Fipresci, a Federação de Imprensa Cinematográfica Internacional. Mas mesmo neste coletivo de filmes, era possível ver sinais do tema central de Cannes este ano: investigação. A maioria incorria nesse aasunto.
Ponha nesse saco até filmes hors-concours como Jogo do Dinheiro, de Jodie Foster, e Dois Caras Legais, de Shane Black. Havia sempre uma sensação de que a busca pela verdade e o desvelar de algum segredo eram a bússola dos filmes. Na seleção competitiva, Aquarius – para pegarmos exemplo mais próximo – foi um dos que melhor encarnou esse espírito investigativo, ao colocar Sonia Braga (a melhor atuação feminina de todo o festival) tentando entender como uma construtora do Recife pode prejudicar sua vida. Longas aclamados como The Salesman, do iraniano Asgar Farhadi, ou Ma Loute, do francês Bruno Dumont, também tinham figuras detetivescas. Isso sem contar Elle, o ovacionado thriller deregresso do holandês Paul Verhoeven (de Instinto Selvagem) à condição de diretor autoral: nele, Isabelle Huppert gasta algumas horas procurando indícios do homem que a estuprou. E mesmo filmes considerados fracassos, como La Fille Inconnue, dos irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne a investigar questões ligadas a traumas políticos da Europa.
Apesar da torcida forte de alguns por Verhoeven e de outros por Kleber, há quem aposte em Paterson, de Jim Jarmusch, como “a” Palma Dourada de 2016, pelo fato de o filme repensar o lugar da poesia e clamar pelo respeito às pequenas coisas da vida, a partir da rotina de um motorista de ônibus (Adam Driver). Aliás foi um ano de reinvenção para Jarmusch em Cannes, que fez um sucesso imenso na cidade com o documentário Gimme Danger, ao trazer o cantor Iggy Pop para o balneário. Ele foi “a” celebridade da Croisette.
Houve também nesta edição espaço para vaias estrondosas. The Neon Demon, por exemplo, jogou um balde de água fria nos planos do diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn (já premiado em Cannes por Drive) de tornar sua reflexão sobre o mundo da moda algo popular. Mas ninguém deixa a Croisette tão achincalhado quanto Sean Penn. O ataque a seu The Last Face, uma love story com cara de ONG sobre dois voluntários dos Médicos Sem Fronteiras (Charlize Theron e Javier Bardem) às voltas com o drama dos refugiados africanos concentrou toda a fúria da ala mais ranzinza da Croisette sobre os ombros do oscarizado ator de Sobre Meninos e Lobos (2003).
Vale destacar, como ponto fraco, que Cannes recebeu este ano uma das piores seleções da mostra paralela Un Certain Regard de toda a sua história, sendo que apenas quatro, entre 18 longas exibidos se salvam. O melhor deles acabou ganhando o prêmio de Melhor Filme UCR: Happiest Day In The Life of Olli Mäki, do estreante Juho Kuosmanen, sobre o boxe na Tailândia. Mas quem também soube se impor aqui foi o drama Capitain Fantastic, com Viggo Mortensen, e The Red Turtle, de Michael Dudok De Wit, que estabeleceu um novo patamar de excelência gráfica para o desenho animado com sua narrativa muda. O quarto e menos luminoso dos títulos “que prestaram” foi o argentino La Larga Noche de Francisco Sanctis, sobre a ditadura em terras hermanas.
Melhor sorte teve a Quinzena dos Realizadores, outra das seções perpendiculares à Palma de Ouro. Nela, o experiente Paolo Virzi (de Capital Humano) reciclou sua própria estética e foi elogiado nas mais variadas línguas por La Pazza Gioia, sobre a amizade de duas internas de uma instituição manicomial. Causou comoção o desempenho das protagonistas: Micaela Ramazzotti e Valeria Bruni Tedeschi. E teve ainda o veterano Marco Bellocchio (de Vincere), que abriu a 15ena com seu Fai Bei Sogni, recriando a realidade de sua nação nos anos 1960 e 90 a partir do trauma de um jornalista que perdeu a mãe ainda menino.
Na Semana dos Realizadores, brilhou o turco Albüm, de Mehmet Can Mertoglu, no qual um casal de 30 anos, obcecado pela paternidade, adota um bebê e forja uma série de fotos de uma falsa gravidez para que a criança, ao crescer, pense que foi gerada pelos dois. Outro filme muito comentado pela Croisette, também egresso da Semana, e marcado por polêmicas entre os ecologistas ferrenhos por comida orgânica foi o frenético Grave, de Julia Ducournau, laureado com um prêmio da Federação de Críticos, ao mostrar as metamorfoses sentimentais de uma vegetariana que come carne pela primeira vez.
No fim das contas, os achados servem para iluminar uma estrada para novas descobertas de linguagem na telona. Em meio aos favoritos, o Omelete arrisca seus palpites:
Palma de Ouro: The Salesman, de Asghar Farhadi;
Grand Prix: Elle, de Paul Verhoeven;
Prêmio do Júri: Toni Erdmann, de Maren Ade, e I, Daniel Blake, de Ken Loach;
Atriz: Sonia Braga, por Aquarius;
Ator: Adam Driver, por Paterson
Direção: Xavier Dolan, por Juste La Fin Du Monde;
Roteiro: Kleber Mendonça Filho, por Aquarius;
Contribuição Artística: Ma Loute, de Bruno Dumont.
A sorte está lançada.